Estadia de Bolsonaro na embaixada da Hungria era novidade para o público, mas não para a PF

Por Alexandre Aragão

28 de março de 2024, 17h48

Eliane Cantanhêde, comentarista da GloboNews e colunista do Estado de S. Paulo, tuitou no X: “Quem, afinal, ‘vazou’ os vídeos de Bolsonaro na embaixada da Hungria? E por que para o The New York Times? 🤨”.

Apesar de o post não mencionar o sigilo constitucional da fonte jornalística, de analisar o trabalho alheio com os olhos da inveja — e de carregar um tom provinciano —, a especulação sobre os interesses de quem repassou vídeos sigilosos ao jornal de maior audiência do mundo pode ser útil para vislumbrar cenários daqui em diante.

Afinal, é razoável crer que, por motivos de segurança, apenas diplomatas da Hungria teriam acesso a tantas horas de gravações de câmeras internas da embaixada, ainda mais com a capacidade de fornecer cópias.


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Caso a ida de Bolsonaro à embaixada da Hungria tenha tido relação com um eventual pedido de asilo, hipótese que os advogados negaram em ofício ao STF, a tentativa de fuga passaria a ser problema também do “irmão” Viktor Orbán.

Em entrevista ao Aos Fatos, o professor de direito internacional da Faculdade de Direito da USP José Augusto Fontoura Costa resumiu a discricionariedade do asilo: “O sujeito pode ser o capeta que, se quiser, o outro país concede a ele a proteção”.

“O asilo pode ser concedido a qualquer um, por qualquer circunstância, porque o país é soberano e faz o que quiser”, ele explicou.

Bolsonaro se tornou um estorvo em potencial para seus aliados internacionais.

Assim como ácaros Varroa destructor provocam o colapso das abelhas quando se hospedam em uma colmeia, a presença de um ex-presidente fugitivo da Justiça em uma embaixada qualquer seria motivo para o colapso das relações entre este país e o Brasil. Poderia levar ainda a sanções de outros atores, como a União Europeia e a ONU.

Qualquer país que ajudasse Bolsonaro a fugir da prisão estaria tomando também a decisão de dinamitar relações com o atual governo brasileiro.

Além de Orbán, restam poucos suspeitos possíveis, entre eles:

  • Javier Milei, da Argentina, que já está enrolado em outras pendengas diplomáticas para se meter em mais uma desse tamanho;
  • Giorgia Meloni, da Itália, que não parece ter incentivos suficientes para abrigar Bolsonaro, apesar de os filhos dele buscarem o passaporte italiano;
  • e Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, que talvez estaria disposto a comprar a briga.

Nesta quinta (28), reportagem no Globo revelou que Netanyahu enviou uma carta a Bolsonaro com um convite para visitar Israel. O texto é datado de 26 de fevereiro, uma semana após Lula ter sido declarado “persona non grata”, pela comparação que fez entre a guerra na Faixa de Gaza e o Holocausto.

A visita ocorreria entre os dias 15 e 18 de maio, e a defesa de Bolsonaro pediu a liberação do passaporte ao ministro Alexandre de Moraes. Segundo o colunista Lauro Jardim, “a possibilidade de Moraes atender ao pedido já era praticamente nula antes das 36 horas na embaixada húngara. Agora, é mais fácil Lula e Bolsonaro tomarem um chope juntos nos próximos dias do que Moraes liberar o passaporte”.

A Polícia Federal já sabia que Bolsonaro havia passado dois dias na embaixada da Hungria, segundo Vera Magalhães escreveu no Globo, mas não tinha tido acesso às imagens divulgadas pelo New York Times.

Caso um mandado de prisão fosse expedido contra o ex-presidente, para diminuir o risco de fuga bastariam meia dúzia de carros e alguns policiais nas entradas de algumas poucas embaixadas — uma possibilidade que os agentes já levavam em conta.

Após a divulgação das imagens, então, a possibilidade de asilo se tornou nula. Mesmo que quisesse, Orbán não poderia mais ajudar o “irmão”.

A expectativa passou a ser sobre qual será a reação do Supremo:

  • se Bolsonaro será preso;
  • se Alexandre de Moraes irá impor alguma outra medida restritiva, como o uso de tornozeleira eletrônica;
  • ou se as investigações seguirão e não vai acontecer nada em público, ao menos por enquanto.

A chance de que Bolsonaro seja preso já era aventada mesmo antes de as imagens virem a público. Na edição de 14 de fevereiro, dia em que o ex-presidente despertou nos travesseiros da embaixada, o Valor Econômico publicou reportagem informando que ministros do STF tratavam “com cautela a hipótese de prisão preventiva”, que só ocorreria “em caso de obstrução de investigação”.

Os desdobramentos da reportagem do New York Times mostram que a Polícia Federal antecipa os passos de Jair Bolsonaro. Se nós só soubemos da estadia do ex-dignitário graças ao trabalho de repórteres, os investigadores e o ministro Alexandre de Moraes já sabiam e têm ainda mais informações.

A desinformação segue o ciclo do noticiário, e as redes bolsonaristas atribuem frases falsas ao embaixador húngaro, como se ele tivesse mandado críticos irem “reclamar na ONU” — o que, na verdade, foi uma ironia dita pelo governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos), ao comentar mortes cometidas pela Polícia Militar na Baixada Santista.

No mundo institucional, porém, os fatos se desenrolam em uma rotação mais lenta. Revelados na velocidade da internet, informações e documentos sobre o inquérito contra Bolsonaro curam sob sigilo por dias ou semanas antes de virem à tona. É como assistir a um acidente de carro em câmera lenta. O espectador já sabe o que vai acontecer — é só questão de tempo —, mas assiste com aflição mesmo assim.


O filme “O Grande Hotel Budapeste”, do cineasta Wes Anderson, é inspirado em textos do escritor Stefan Zweig, que nasceu em 1881, em Viena, no Império Austro-Húngaro.

Um dos autores mais lidos na Europa nos anos 1920 e 30, ele veio parar no Brasil fugindo da perseguição nazista aos judeus. Se apaixonou pelo país e publicou “Brasil, país do futuro” (1941) — título que era para ser um vaticínio, mas passou a ter ares de maldição. Na época do lançamento, o país vivia a ditadura de Getúlio Vargas.

Naquele momento, Zweig “quer se opor ao não encarnado por Hitler e procura explorar todas as oportunidades para exercer sua devoção ao sim”, escreve Alberto Dines na biografia “Morte no paraíso: a tragédia de Stefan Zweig” (Rocco).

“O Brasil é o instrumento que pretende utilizar para mostrar que, além do medo e do ódio, existe esperança, réstia de otimismo.”

No filme de Wes Anderson, o personagem Monsieur Gustave (Ralph Fiennes) traz referências a Zweig. Assim como o escritor, o personagem tenta escapar de um regime fascista.

Sob censura, jornalistas brasileiros rejeitaram o ufanismo da obra de Zweig, apesar do sucesso de vendas. Deprimido com o avanço da guerra na Europa e sentindo-se isolado dos amigos, o escritor terminou seus dias em Petrópolis (RJ), onde se matou.

“Foge da catástrofe mas esgota-se revivendo nos escombros”, escreve Dines sobre o período. “Emparedado no pretérito, seu único olhar para o porvir — o desgraçado livro sobre o Brasil — foi um fracasso.”

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