Méuri Elle e Natália Sampaio/Aos Fatos

Investigado pelo MPF, Kwai lucra com lives que expõem crianças a assédio e chantagem

Por Gisele Lobato

29 de janeiro de 2024, 11h40

Uma mochila vermelha se destacava na parede simples de madeira, pintada de verde claro, diante da qual duas meninas faziam uma transmissão ao vivo pelo Kwai na última quarta-feira (24). Com cadernos nas mãos, elas se propunham a desenhar para outros usuários que assistiam à live.

“Tá usando bojo?”, perguntou um espectador, em referência aos seios de uma das garotas.

“Eu nem sei o que é bojo”, ela respondeu.

Embora o Kwai diga proibir que menores de idade façam lives — e, em tese, autorize apenas maiores de 13 anos a abrir conta —, a experiência de navegar pelo aplicativo mostra que as regras não são aplicadas.

Nos últimos dias, o Aos Fatos flagrou dezenas de crianças — sobretudo meninas — realizando transmissões ao vivo no Kwai em busca de seguidores e dinheiro, enquanto eram assediadas por homens adultos.

A exposição indevida de crianças é um dos eixos do inquérito aberto pelo MPF (Ministério Público Federal) no último dia 17, na sequência de uma reportagem da piauí que revelou, a partir de documentos e entrevistas com funcionários e ex-funcionários, que o Kwai teria pago pela produção de desinformação, perfis clonados e outros conteúdos desonestos a fim de impulsionar sua operação. Segundo uma representação recebida pela Procuradoria, alguns desses conteúdos exploram a sexualização de menores de idade.

Reportagem do Núcleo publicada na quarta (24) constatou que o algoritmo da plataforma recomendou vídeos que sexualizavam menores de idade em 40 sessões de uso registradas no teste, e muitas recomendações ocorriam logo no primeiro vídeo exibido ao acessar o aplicativo.

Nas transmissões ao vivo do Kwai, a sexualização é regra — ocorrendo em praticamente todas as lives a que Aos Fatos assistiu. Nos comentários, frases como “levanta a blusa”, “quero conhecer você” e “fica de pé para ganhar presente” dividem espaço com expressões sexuais explícitas, convites para conversas privadas e até divulgação de canais de Telegram para a troca de pornografia infantil, referida pela sigla CP (child pornography, em inglês).

  • Os “presentes” recebidos pelos streamers são uma das formas de monetização no Kwai, que embolsa um percentual;
  • Bastões de luz, flores ou outras prendas enviadas por espectadores podem ser trocados por moedas para utilizar na plataforma ou transformados em dinheiro;
  • Na busca por esses presentes, meninas estão sujeitas a interações com predadores, que geram receita ao aplicativo quando compram os créditos para assediá-las.

“Vocês estão falando que é para ‘mim’ dançar, rebolar, fazer quadradinho… E aí, tá melhor?”, indagou uma garota que parecia ter menos de dez anos e fazia uma transmissão na tarde de segunda-feira passada (22).

“Mostra o look”, “me segue de volta”, insistiam os seguidores à menina — que chegou a informar, após ser questionada, o nome da cidade do interior de Minas Gerais onde vive, colocando em risco a própria segurança.

O Kwai estima ter 48 milhões de usuários no Brasil. A investigação do MPF ocorre no momento em que a empresa está em maior evidência, com potencial para aumentar seu alcance. Após tomar o lugar do TikTok como rede oficial do Big Brother Brasil, o Kwai foi a marca mais mencionada entre as que patrocinam o reality da Globo, segundo levantamento especializado. No ano passado, a empresa anunciou ter investido US$ 52 milhões em parcerias de conteúdo e ajudou a produzir publicidade para marcas como Coca-Cola, Skol e Unilever.

DESCONTROLE E AMEAÇAS

Numa das lives testemunhadas pela reportagem, um usuário preocupado com a exposição da criança denunciou à plataforma a transmissão irregular — procedimento que se repetiu em quase todas as outras transmissões de menores. Porém, a atuação do Kwai ao receber a notificação demonstra as fragilidades no sistema:

  • Por alguns segundos, a tela escureceu e surgiu um sinal de exclamação com o aviso, em inglês, de que se tratava de uma live feita por menor de idade;
  • Logo abaixo, em português, o texto convidava o espectador a aguardar enquanto o streamer “fazia ajustes”;
  • Ao ver que surgiu um temporizador em sua tela, a criança informou que precisaria encerrar a live, mas prometeu voltar no dia seguinte — demonstrando não apenas familiaridade com o mecanismo, como também que o banimento é temporário;
  • A transmissão, porém, acabou sendo retomada normalmente após o aviso, surpreendendo a própria menina — que começou a rebolar com as mãos nos joelhos.

Print de live no Kwai mostra tela preta com uma tarja indicando que transmissão era feita por alguém menor de idade. No canto superior direito aparecem duas mãos de desenho animado com luvas brancas, segurando bastões de luz. Na parte de baixo, aplicativo mostra perfil da menina com a frase “siga-me se gostar”.
‘Fazendo ajustes.’ Ao mesmo tempo em que exibe tarja dizendo que streamer é menor de idade, Kwai permite envio de presente e divulga link do perfil da criança (Reprodução/Kwai)

Nas vezes em que as lives foram derrubadas, o aplicativo exibiu o perfil do streamer menor de idade junto à mensagem de encerramento, oferecendo a assediadores um caminho para seguir a criança.

O Aos Fatos também constatou que o sistema de denúncias é usado por usuários para chantagear meninas a fim de que obedeçam ordens. “Mostra ou vou derrubar a conta”, ameaçava mensagem.

Diante das mensagens impróprias enviadas por “velhos”, segundo definiu, uma das meninas protestou: “O Kwai precisa fazer alguma coisa contra eles, não ficar derrubando live”.

Os assediadores, porém, pareciam pouco preocupados em sofrer consequências por seus comentários, já que muitos utilizam seus nomes verdadeiros nas interações com as crianças.

Assim como os abusos, as queixas das meninas também são comuns. Em um dos vídeos, uma criança ameaça parar de publicar se continuasse recebendo comentários “nada legais”. “Eu vou ser obrigada, e não é porque minha mãe está mandando, porque ela nem sabe. Se ela soubesse, ela já teria excluído minha conta.”

Pelas regras do Kwai, nenhum menor de idade poderia estar na rede sem o aval dos pais.

O assédio e o constrangimento a que crianças estão sendo submetidas podem ter impacto profundo, como o desenvolvimento de ansiedade e depressão, diz Michelle Sampaio, psicóloga colaboradora do ambulatório de sexualidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. No futuro, essas meninas também podem ter dificuldades em viver de forma saudável sua sexualidade e se envolver em relações abusivas.

O assédio ao vivo é apenas uma face da sexualização de crianças e adolescentes no Kwai. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, no ano passado foram registradas 19 denúncias relacionadas ao aplicativo por violência contra menores de idade, contra 4 denúncias em 2022.

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O ALGORITMO DO PREDADOR

Ao acompanhar as lives de crianças e adolescentes no Kwai, o Aos Fatos constatou que, em poucas horas, é possível treinar o algoritmo simulando interesses de um predador:

  • Para o experimento, foi utilizada uma conta nova no Kwai após instalar o aplicativo em um celular que nunca tinha explorado a plataforma;
  • Inicialmente, foi feita uma busca utilizando como palavra-chave o termo “novinha” — expressão com conotação sexual que costuma se referir a crianças e adolescentes;
  • A busca resultou, sobretudo, em vídeos de jovens dançando;
  • Nesses vídeos, a reportagem identificou usuários que deixavam mensagens com insinuações de cunho sexual e visitou seus perfis;
  • Nessas contas, foi explorada a aba “curtidas”, para visualizar o tipo de conteúdo que interessava aos usuários que assediavam as meninas;
  • Após o exercício ser repetido algumas vezes, o algoritmo passou a sugerir de forma quase exclusiva o mesmo tipo de conteúdo que havia sido visualizado nas contas visitadas.

O recorte feito pela tecnologia da plataforma não se limitou às adolescentes, entregando também vídeos de meninas pré-puberdade, incluindo crianças de fralda. Os conteúdos exibidos não necessariamente sexualizavam as meninas de forma explícita, mas isso não impedia que homens deixassem comentários expressando desejo, por vezes de forma chula.

Para Michelle Sampaio, a própria dinâmica das redes pode incentivar os assediadores a investir contra as crianças, já que eles se sentem protegidos e validados em virtude do comportamento de outros usuários, em uma lógica de “já que está todo mundo fazendo, eu também posso fazer”. Ela considera também que a naturalização da sexualização infantil pode abrir “brecha para que crimes de assédio ou até de abuso sexual aconteçam” fora das telas.

Segundo a psicóloga, que também é coordenadora do departamento de parafilias da ABEMSS (Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Sexual), não necessariamente quem está por trás dos comentários no Kwai é um pedófilo, uma vez que o transtorno pedofílico é marcado por “um desejo intenso, recorrente e preferencial” por crianças. Entretanto, Sampaio esclarece que muitos casos de abusos são feitos por pessoas que não têm o diagnóstico.

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‘DEU MOLE, É VAPO’

No Kwai, a sexualização de crianças não acontece apenas nos conteúdos que mostram menores de idade. Durante a apuração desta reportagem, conforme os vídeos das meninas eram exibidos, o algoritmo passou a sugerir outros conteúdos relacionados à pedofilia, como reportagens de criminosos sendo presos por causa da prática.

Outras recomendações do aplicativo foram dicas de tecnologia — por exemplo, ensinando a apagar documentos de forma definitiva do computador — e conteúdo jurídico.

“A partir do momento que aquela pessoa completa 14 anos, deu mole é vapo”, afirmou um advogado, em vídeo recomendado pelo Kwai, respondendo a um seguidor que queria saber se era crime ficar com menores de idade.

Já outro advogado, questionado se a polícia poderia acessar conversas de WhatsApp sem ter a posse de um celular, recomendou que se tivesse atenção a backups feitos na nuvem.

Em outro vídeo, um terceiro criminalista esclareceu o que poderia acontecer se um suspeito quebrasse o seu aparelho no momento de uma batida policial, a fim de ocultar provas. Embora não tratassem especificamente do tema, os dois conteúdos poderiam beneficiar quem comete o crime de armazenar ou compartilhar pornografia infantil.

“Para de achar que essas menininhas aí são inocentezinhas”, afirmou uma mulher em outro conteúdo recomendado pelo Kwai, que havia sido postado em canal motivacional. Outra sugestão do algoritmo mostrava um padre respondendo se religiosos poderiam denunciar abusos dos quais tomaram conhecimento durante confissões.

Procurado pelo Aos Fatos, o Kwai disse que está “comprometido com a proteção de menores” e que “não permite conteúdo que retrate ou promova abuso, dano, perigo ou exploração na plataforma”. A empresa considera que “a natureza em tempo real das transmissões ao vivo e o dinamismo em que são adaptadas às técnicas de violação fazem com que a identificação de comentários e conteúdos indevidos seja um desafio”, mas afirma estar “sempre buscando novas formas de melhorar seus mecanismos e políticas” para garantir um ambiente digital “seguro e saudável” para os usuários.

No posicionamento, o Kwai diz também que está “melhorando seu algoritmo e aperfeiçoando o treinamento da equipe de moderadores locais” e que mantém “constantes conversas com profissionais especializados e a sociedade civil para identificar ameaças”. A plataforma reforçou ainda que possui recursos para que usuários denunciem comportamentos e vídeos inadequados e “mecanismos de segurança que operam 24 horas por dia, combinando análise humana e inteligência artificial para identificar e remover rapidamente tais conteúdos impróprios”.

Denúncias. Quem se deparar com pornografia infantil na internet pode reportar o caso à Central Nacional de Denúncias da SaferNet e à Polícia Federal (denuncia.ddh@dpf.gov.br). Casos de abuso e exploração sexual de crianças — inclusive fora da internet — também podem ser denunciados, de forma anônima, pelo Disque 100.

Referências:
1. Kwai (1 e 2)
2. Conjur
3. piauí
4. Núcleo
5. Meio&Mensagem (1 e 2)
6. Aos Fatos
7. SaferNet Brasil
8. Governo federal


Aos Fatos licencia suas checagens para que plataformas digitais desenvolvam políticas de combate à desinformação. O Kwai é uma delas. Entenda.

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