🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Julho de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Moderação do Jusbrasil falha e permite artigos com mentiras sobre Covid-19 e urna eletrônica

Por Bruna Leite e Milena Mangabeira

13 de julho de 2023, 11h33

Teorias da conspiração sobre a pandemia de Covid-19 e desinformações sobre a segurança das urnas eletrônicas brasileiras estão entre os temas abordados em artigos publicados no Jusbrasil, site jurídico mais acessado da internet brasileira.

A principal função do Jusbrasil é disponibilizar informações sobre a tramitação de processos e pesquisa de jurisprudência, com base em dados oficiais do Poder Judiciário. A plataforma, porém, possui uma seção de artigos e notícias, na qual qualquer usuário cadastrado pode publicar textos:

  • Levantamento do Aos Fatos identificou ao menos 50 publicações no Jusbrasil, entre artigos e comentários, que traziam conteúdo já checado como falso ou distorcido;
  • Destas, 16 traziam mentiras ou distorções sobre a pandemia do coronavírus, como ataques às vacinas e defesas de tratamentos com remédios comprovadamente ineficazes contra a Covid-19, como a cloroquina;
  • Outros 22 textos traziam alegações falsas para questionar a segurança das urnas eletrônicas ou o processo eleitoral;
  • Também foi identificado discurso de ódio, incluindo texto de um autor que lamentou que Adélio Bispo não conseguiu “o triunfo desejado” ao dar uma facada no ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em setembro de 2018.

Em nota, a empresa diz que possui uma equipe de moderação de conteúdo desde maio de 2022, “que analisa de forma prévia e individual cada artigo”, levando em conta as regras de comunidade da plataforma.

Segundo a empresa, a “grande maioria” dos conteúdos desinformativos identificados pelo Aos Fatos foram publicados antes do início da moderação. O Jusbrasil diz ainda que os comentários nos posts “são moderados com ferramentas para impedir palavras ofensivas e spammers e podem ainda ser analisados pelo crivo humano, se reportados pelos usuários”.

O comunicado ressalta que a “página de artigos do Jusbrasil tem como única finalidade a publicação e discussão de conteúdos jurídicos”.

O Jusbrasil afirmou que “os conteúdos apontados pela reportagem que não versam sobre pautas jurídicas serão retirados do ar” — 14 das 50 publicações continuavam no ar após o contato do Aos Fatos.

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A empresa não é obrigada por lei a manter equipe de moderação e não deverá ser contemplada na regulação das plataformas digitais proposta pelo projeto de lei 2.630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, de acordo com especialistas consultados pela reportagem.

O projeto, em tramitação na Câmara, engloba plataformas com mais de 10 milhões de usuários. Entretanto, o último parecer divulgado pelo relator, deputado Orlando Silva (PC do B-SP), exclui da regulação plataformas de “busca e disponibilização de dados obtidos do poder público”. Essa exceção abrange o Jusbrasil.

  • Na contramão dos esforços para impedir a viralização de conteúdos criminosos, o conteúdo desinformativo publicado no Jusbrasil é indexado com destaque em motores de busca como o Google, graças à grande audiência do site;
  • Ao pesquisar a expressão “falha nas urnas” no Google, por exemplo, o Aos Fatos identificou dezenas de resultados desinformativos sobre o processo eleitoral na plataforma jurídica — que, por sua natureza, também acaba concedendo credibilidade a esses textos.
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A exclusão do Jusbrasil do “PL das Fake News” demonstra a dificuldade de se construir uma legislação que contemple a internet como um todo, avalia Iná Jost, coordenadora da área de Liberdade de Expressão do InternetLab. “A internet é um ambiente extremamente volátil. Há dificuldade de promulgar uma lei que abranja todas as questões, modelos de negócios e ferramentas”, salienta.

Para a especialista, ainda que fique de fora da regulação, é indispensável que a plataforma deixe sinalizado que o conteúdo publicado na aba “artigos e notícias” não é baseado em processos judiciais, para que o “usuário que chegar desavisado saiba que aquilo nem sempre diz respeito a uma fonte oficial, como os dados de um processo”.

Yasmin Curzi, professora e pesquisadora do CTS (Centro de Tecnologia e Sociedade) da FGV (Fundação Getulio Vargas), ressalta que, mesmo fora do “PL das Fake News”, o Jusbrasil pode vir a ser responsabilizado com base em outras leis, cabendo à sociedade civil cobrar da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) que exerça fiscalização.

“Havendo desinformação, havendo conteúdo nocivo que possa causar prejuízo a terceiros, o próprio portal pode vir a ser responsabilizado, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor ou outra legislação que se aplique. Isso também está descrito no próprio Marco Civil da Internet, no seu artigo III, que trata da responsabilidade por atividade de risco do provedor”, diz a pesquisadora.

DA ‘VACHINA’ À CLOROQUINA

Sem que essas pautas tivessem qualquer relação com o mundo jurídico, desinformações e teorias da conspiração envolvendo a pandemia do coronavírus foram impulsionadas por posts e comentários publicados no Jusbrasil, segundo o Aos Fatos constatou.

“Vachina”, “praga chinesa” e “vírus da China” — léxico usado para criticar as vacinas produzidas em parceria com laboratórios chineses e atacar o país onde a Covid-19 foi surgiu — estão entre os termos encontrados em publicações disponíveis no site jurídico.

Print de comentário que chama a pandemia de “fraldemia” e diz que ela foi um “grande negócio” para a “China comunista”. Texto diz ainda que querem empurrar “vachinas fraldulentas” “goela abaixo” das pessoas.
Negócio da China. Comentário publicado no Jusbrasil alega que a pandemia do coronavírus foi uma fraude e que a China “soltou o tal vírus no ar” (Reprodução)

Esse discurso coincide com o do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que em 2021 insinuou que a China poderia ter criado o coronavírus como parte de uma “guerra química”, mas depois voltou atrás.

Em outros comentários, usuários comparam a vacinação a uma tentativa de genocídio e ao holocausto, denunciando uma suposta criação de “campos de concentração” para não-vacinados. Também alegam que o imunizante era experimental e que os brasileiros foram “cobaias” da indústria farmacêutica. Em setembro de 2021, a Anvisa emitiu comunicado informando que as vacinas usadas no Brasil não eram experimentais e que todas haviam passado pelas três fases de pesquisa.

A defesa do tratamento com remédios comprovadamente ineficazes contra a Covid-19 também figura entre os artigos desinformativos identificados na plataforma jurídica. Em ao menos dois deles, é citado como referência o microbiologista Didier Raoult, principal promotor do uso da hidroxicloroquina contra o coronavírus. A contestação da indicação pela comunidade científica, bem como a retratação do próprio Raoult — que assumiu a ineficácia do medicamento —, no entanto, foram ignoradas.

Print de trecho de um artigo desinformativo que diz que o microbiologista francês Didier Raoult, em testes com hidroxicloroquina e azitromicina, conseguiu eliminar o coronavírus do corpo dos pacientes.
Vírus desapareceu. Trecho de artigo desinformativo usa estudo do microbiologista francês Didier Raoult, que depois se retratou, para defender tratamento ineficaz contra o coronavírus (Reprodução)

DENÚNCIAS CONTRA AS URNAS

Além da desinformação relacionada à Covid-19, o Jusbrasil também reunia pelo menos 22 publicações que mentiam ou distorciam informações para questionar a segurança da urna eletrônica e a confiabilidade do processo eleitoral. O Aos Fatos identificou textos com esse argumento mantidos no ar pela plataforma desde pelo menos 2015.

Captura de tela com trechos de artigo publicado no Jusbrasil, que alegam que petistas sabiam o resultado das eleições de 2014 previamente, que votos em Bolsonaro em 2018 não foram confirmados nas urnas e que as pesquisas de intenções de voto em 2018 foram infladas a favor de Lula.
Golpe à vista. Trechos de artigo desinformativo publicado no Jusbrasil que especulava sobre a possibilidade de um golpe descredibilizando as eleições presidenciais de 2014 e de 2018 (Reprodução)

Os conteúdos publicados pelos usuários do Jusbrasil incluem alegações de que o sistema brasileiro não permite a recontagem de votos, porque as urnas eletrônicas não seriam auditáveis e o boletim de urna não serviria de comprovante — afirmações incompatíveis com o funcionamento das urnas eletrônicas, como o Aos Fatos explicou.

Captura de tela com trecho desinformativo de artigo publicado no Jusbrasil que alega que não é possível fazer recontagem dos votos da urna eletrônica e que isso tornaria supostas fraudes nas eleições impossíveis de serem comprovadas.
Inauditáveis. Trechos de artigo publicado no Jusbrasil desinformam ao dizer que não é possível realizar uma recontagem de votos na urna eletrônica (Reprodução)

Segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), é possível auditar os equipamentos, e qualquer organização pode requisitar o acesso a fim de realizar seus próprios estudos. O tribunal também já esclareceu as várias etapas do processo de auditoria e segurança das urnas, que incluem o RDV (registro digital do voto), a inspeção nos códigos-fonte e o teste de integridade das urnas, que tem como objetivo avaliar a segurança na captação e contagem do voto.

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A alegação de que as urnas eletrônicas não são auditáveis foi repetida ao menos 34 vezes por Bolsonaro. No último dia 30 de junho, o ex-presidente foi declarado inelegível por oito anos pelo TSE, por ter apresentado falsas acusações sobre o sistema eleitoral brasileiro em uma reunião com embaixadores estrangeiros, em julho de 2022.

Textos no Jusbrasil também apresentam mentiras sobre o sistema operacional das urnas eletrônicas. Ao menos dois deles enganam ao afirmar que o código-fonte teria sido fornecido à empresa britânica Smartmatic e que, a partir de 2020, os equipamentos passariam a usar o software ElectionGuard, da Microsoft, o que também não é verdade. O sistema da Microsoft foi testado e aplicado nos Estados Unidos em 2021, mas não no Brasil, que usa o sistema operacional Linux desde 2008.

Outra notícia publicada no Jusbrasil afirmava que um hacker teria alterado o resultado das eleições de 2012, o que é falso. Outro texto dizia que a “Lei de Benford” comprovaria fraude nas eleições de 2018, o que o TSE já desmentiu. O tribunal também já esclareceu que não é verdade que eleitores não conseguiram confirmar o voto em Bolsonaro nas eleições de 2018, ao contrário do que diz um texto publicado na plataforma jurídica, que também mente ao afirmar que pesquisas de intenção de voto teriam errado a favor da chapa Lula-Haddad.

Bolsonaro na mira. A maioria dos textos desinformativos identificados no Jusbrasil espelham posições do bolsonarismo, mas o ex-presidente também é alvo de discurso de ódio em pelo menos quatro artigos publicados na plataforma. Um deles, além de proferir xingamentos, chega a lamentar o fato de Adélio Bispo — preso por ter dado uma facada em Bolsonaro na corrida eleitoral de 2018 — não ter “conseguido o triunfo desejado” com o atentado.

O discurso de ódio contra o ex-presidente divide espaço com ataques contra políticos de outras orientações e o STF. O Jusbrasil também traz um artigo com orientações de como processar alguém por ser chamado de fascista.

Referências:

1. Aos Fatos (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10)
2. Câmara dos Deputados (PL 2.630/2020)
3. Jusbrasil (1, 2)
4. O Globo (1, 2)
5. Agência Brasil
6. Tribunal Superior Eleitoral (1, 2, 3, 4, 5, 6)
7. G1
8. Canal Tech
9. Serpro
10. Tribunal Regional Estadual do Rio de Janeiro

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