Luiz Fernando Menezes/Aos Fatos

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Julho de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Plataformas de pagamento impulsionam golpes e vendem até ‘pílula do câncer’ ineficaz

Por Bianca Bortolon e Marco Faustino

12 de julho de 2023, 12h59

Plataformas de pagamento permitem que golpistas encontrem interessados em divulgar produtos fraudulentos nas redes em troca de percentuais dos valores pagos pelas vítimas. Especializadas no chamado “marketing de afiliados”, empresas como Braip e Perfect Pay lucram com esses golpes e chegam a premiar os vendedores de acordo com as receitas que conseguem obter.

O Aos Fatos identificou um total de 179 esquemas fraudulentos sendo difundidos como produtos virtuais na Braip (73) e na Perfect Pay (106):

  • Entre eles estão golpes denunciados pela imprensa, como InstaMoney, TikTok Pay e MoneyLooks, que enganam ao prometer lucros por curtir, avaliar ou assistir a conteúdos nas redes;
  • Outra fraude promete pagamentos recorrentes a mulheres jovens para conversar com homens ricos;
  • Dos 10 principais produtos digitais fornecidos pela Perfect Pay, ao menos 5 são golpes já desvendados pela imprensa;
  • Na Braip, o golpe InstaMoney está entre os oito produtos digitais com maior “indicador de potência” — ou seja, com potencial de vender na plataforma;
  • Além dos esquemas virtuais, as plataformas de pagamento também disponibilizam produtos físicos sem eficácia comprovada;
  • É o caso da fosfoetanolamina — a falsa “pílula do câncer” —, cuja comercialização é proibida no Brasil: 3 dos 10 principais produtos físicos ofertados na Perfect Pay são frascos da substância.

Página da Perfect Pay mostra ranking chamado “Top 10 digitais”, no qual constam 5 esquemas já noticiados como golpes
Cardápio. Dos 10 principais produtos digitais da Perfetc Pay, ao menos 5 são golpes conhecidos, como o “Meu velho rico”, que promete dinheiro para mulheres conversarem com “sugar daddies” (Reprodução)

Página da Braip mostra os 8 produtos com maior potencial de vendas. O oitavo é o Insta Money, com nota 51. O anúncio do produto oferece “até 90% de comissão”
Indicador de potência. Golpe do Insta Money aparece como oitavo produto com maior potencial de vendas em página da Braip

Os termos de uso da Braip proíbem “produtos cujas características indiquem elevado potencial de fraude”. Embora não contenha nenhuma cláusula que vete itens potencialmente fraudulentos, as regras Perfect Pay informam que seus usuários não podem usar a plataforma para vender medicamentos proibidos ou restritos nos termos da legislação brasileira. Apesar das restrições, os sites das duas empresas continuam disponibilizando livremente esses produtos, incluindo a falsa pílula contra o câncer

A fosfoetanolamina é oferecida em frascos nas plataformas de pagamentos, mas não possui registro na Anvisa como medicamento ou suplemento alimentar, o que impede sua comercialização no Brasil. Sua eficácia e segurança nunca foram comprovadas cientificamente.

A substância é uma molécula encontrada no corpo humano, que participa na formação das membranas celulares e foi sintetizada em laboratório por um professor da USP na década de 1990. Desde então, passou a ser distribuída informalmente a pacientes que procuravam um tratamento alternativo contra o câncer.

  • Em maio de 2016, uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT) chegou a autorizar o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com a doença;
  • Em 2017, porém, testes no Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo) apontaram a ineficácia da substância;
  • Em seguida, a Anvisa suspendeu propagandas que lhe atribuíam propriedades terapêuticas;
  • O STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou a lei que liberou o uso da fosfoetanolamina em 2020.

Página “Top 10 físicos” da Perfect Pay mostra dez produtos oferecidos na plataforma, como emagrecedores. Três primeiros anúncios mostram  frascos de fosfoetanolamina
‘Pílula do Câncer.’ Cápsulas de fosfoetanolamina, substância sem eficácia para curar tumores, estão no topo do pódio de produtos físicos mais vendidos na Perfect Pay (Reprodução)

Página com o logotipo da Braip no canto superior esquerdo, sobre tarja roxa, mostra frasco do produto “Fosfo 500”, atribuído à categoria “saúde, bem estar e beleza”, sendo comercializado por valores entre 279 e 528 reais
Fosfo 500. Frasco de fosfoetanolamina, substância falsamente divulgada como cura para o câncer, é comercializado por até R$ 528 na plataforma Braip (Reprodução)

GOLPES LUCRATIVOS

Por meio de lojas que funcionam dentro das próprias plataformas de pagamento, criadores disponibilizam produtos — incluindo golpes — para serem revendidos por afiliados, que são pessoas que divulgam o item em troca de comissões pelas vendas realizadas.

Essa forma de promoção é chamada de “marketing de afiliados”. Embora seja legal e adotada há anos por grandes redes do varejo online, como a Amazon e o Magazine Luiza, a estratégia também tem sido usada para aumentar a capilaridade de fraudes.

Ferramentas para aumentar o alcance de golpes — e o número de vítimas — têm sido disseminadas em vídeos no YouTube e em anúncios impulsionados em plataformas da Meta, que lucrou indiretamente com o esquema, conforme o Aos Fatos mostrou em reportagens recentes. No Instagram e no Facebook, golpistas enganaram usuários que buscavam obter selos de verificação.

A união entre desinformação e redes sociais, com o objetivo de lesar consumidores, é um problema recorrente para as big techs. Os golpes que viralizam nas redes podem ter consequências financeiras, mas também na saúde da população, como exemplifica a fosfoetanolamina e o caso da lipozepina, revelado pelo Aos Fatos.

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Nas plataformas de pagamento, quando o afiliado se associa à promoção de um produto, recebe um link personalizado, que será usado pelas futuras vítimas para fazer seus pagamentos. O dinheiro será repartido pelas plataformas entre o dono do produto e os vendedores virtuais, segundo percentual definido pelos “empreendedores”.

Nessa intermediação, as plataformas de pagamento garantem também seus próprios lucros:

  • A Braip e a Perfect Pay, por exemplo, recebem um percentual que varia entre 7,9% e 9,9% a cada saque de dinheiro realizado pelos usuários;
  • Além disso, as plataformas cobram ainda uma taxa no valor de R$ 1 a cada venda;
  • As empresas também aplicam percentuais para antecipação de repasses e compras parceladas.

Para estimular os afiliados e os criadores de golpes, as plataformas de pagamento oferecem premiações de acordo com o faturamento que eles conseguem obter. No caso da Perfect Pay, a premiação segue uma escala que varia desde a primeira venda até R$ 25 milhões em valores sacados.

Já na Braip a maior premiação ocorre quando a somatória de saques atinge R$ 5 milhões. A plataforma envia placas comemorativas a partir de R$ 100 mil sacados, que são comumente ostentadas nas redes sociais pelos golpistas.

Kits de divulgação. Para conseguirem vender mais — e impulsionar seus lucros —, os afiliados fazem anúncios em mecanismos de busca, plataformas de vídeo e redes sociais, além de divulgar o produto em aplicativos de mensagens, como o WhatsApp.

Os criadores do golpe fornecem ao afiliado suporte telefônico e uma espécie de “kit de divulgação” para ajudar na divulgação do produto, que é composto por um modelo de página de vendas editável e diversos elementos desinformativos, como fotos, ilustrações, vídeos e depoimentos editados de celebridades ou de supostos compradores.

O material geralmente fica disponível em drives públicos, como o Google Drive, ou em contas em plataformas de vídeo. Os links para os kits também podem ser inseridos nas descrições dos produtos nas plataformas de pagamento ou enviados aos afiliados após confirmação da filiação. Com o “kit de divulgação” em mãos, os vendedores têm três formas de ganhar dinheiro:

  • Usar as imagens e vídeos que recebeu para divulgar o golpe por meio de anúncios nas redes sociais, nos quais compartilha o link personalizado de pagamento fornecido pelas plataformas;
  • Criar um site próprio semelhante ao do golpe. Nesse caso, o afiliado é responsável por comprar domínios e obter a hospedagem. O site será divulgado por meio de anúncios ou publicações patrocinadas, e o pagamento será feito no link personalizado;
  • Montar seu próprio golpe. O afiliado pode fazer mudanças significativas no material que recebeu do criador, tornando-se dono de seu próprio golpe. O novo esquema será divulgado nas plataformas de pagamentos, angariando novos afiliados.

Pasta “Criativos”, armazenada dentro de uma pasta do Google Drive chamada “Fosfoetanolamina - afiliados”, distribui anúncios. Um deles chama o produto de “pílula do câncer”. Dez das propagandas mostram mulher sem cabelo ou com a cabeça coberta por lenço, também sugerindo relação da substância com a doença.
Criativos. Peças publicitárias para divulgação da fosfoetanolamina são compartilhadas em pasta no Google Drive, sugerindo falso potencial de cura do câncer (Reprodução)

A facilidade de se tornar afiliado e começar a vender produtos pela internet também aumenta a demanda por anúncios em redes sociais como o Facebook e o YouTube, que lucram com essa publicidade enganosa. As propagandas fraudulentas costumam ser impulsionadas por perfis falsos administrados pelos criadores dos golpes e seus afiliados para atrair as vítimas para as páginas de vendas dos produtos.

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CÚMPLICES DE UM ESQUEMA

Segundo o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e o Procon de São Paulo, quando uma plataforma funciona como marketplace — interagindo com os clientes sobre os pagamentos e a entrega dos produtos —, ela se torna parte do negócio e, por isso, também pode ser responsabilizada pelos golpes.

Em nota enviada ao Aos Fatos, o Idec informou que o Código de Defesa do Consumidor prevê a responsabilidade solidária da plataforma nesses casos, uma vez que o vendedor real fica pouco visível para o consumidor nesse tipo de esquema. Nessa situação, a plataforma que intermediou o negócio é tão responsável por ressarcir o consumidor lesado quanto quem aplicou o golpe.

“Na maioria das vezes, a referência do consumidor é a plataforma de pagamento, e não o produtor [do golpe], pois a própria plataforma utiliza desse mecanismo como atrativo para os produtores”, diz Igor Marchetti, advogado do Idec.

Renata Reis, especialista em proteção e defesa do consumidor do Procon de São Paulo, afirmou ao Aos Fatos que todos os fornecedores envolvidos na cadeia de consumo têm responsabilidade solidária. Ainda que o criador do golpe não possa ser encontrado, a empresa que sobrou, sendo idônea ou não, tem que indenizar o consumidor.

“Por mais que as empresas tentem em termos de uso, regulamentos, contratos prévios, dizer que se isentam de responsabilidade pela atuação de seus parceiros comerciais, essa cláusula é nula. É uma cláusula abusiva”, diz Reis.

As vítimas dos golpes podem apresentar queixas aos órgãos de defesa do consumidor e entrar com ações no Judiciário, tanto contra a plataforma como contra o vendedor, para tentar reparação pelo prejuízo.

Referências:

1. UOL
2. Tecmundo (1, 2)
3. O Tempo
4. Braip (1, 2, 3)
5. Governo federal (1, 2)
6. Senado Federal
7. A.C. Camargo
8. G1
9. Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica
10. Amazon
11. Magazine Luiza
12. Aos Fatos (1, 2, 3, 4, 5)
13. Perfect Pay

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