🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Setembro de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Luz, câmera, ação penal: vídeos da TV Justiça são usados para atacar e desinformar sobre o STF

Por Alexandre Aragão

20 de setembro de 2023, 18h53

Para quem vê pela TV Justiça, nem parece que há apenas oito meses o plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) estava entre estilhaços e móveis arruinados.

Os julgamentos dos golpistas do 8 de janeiro reanimaram a máquina de conteúdo que usa vídeos do tribunal para informar e desinformar.

A Plataforma de hoje é sobre como ministros e advogados se aproveitam dessa audiência massiva.

EM 5 PONTOS:

  • É graças à TV Justiça que há vídeos de dois ministros do STF pedindo a absolvição de golpistas;
  • Adotar sigilo absoluto no tribunal, como advogou Lula, só serviria para esconder votos constrangedores;
  • Conteúdos da emissora são replicados, remixados ou deturpados por inúmeros canais, em todas as plataformas;
  • “Bendita democracia, que permite que venham aqui e digam contra nós, a nós mesmos, assegurados por nós”, disse Cármen Lúcia;
  • Favorito para a cadeira de Rosa Weber, Dino desinforma para agradar Lula.

A newsletter Plataforma chega ao seu email toda quarta-feira.

Assine de graça e receba análises exclusivas.


🎬 Luz, câmera, ação penal

Alvo de críticas nas últimas semanas, o ministro Dias Toffoli — que anulou provas da Odebrecht na Lava Jato e disse que a prisão de Lula foi “um dos maiores erros judiciários da história do país” — aproveitou os primeiros julgamentos de golpistas do 8 de janeiro para defender no plenário seu legado como presidente do STF, entre 2018 e 2020.

Ao comentar o contexto da tentativa de golpe, o ministro relembrou “aquele inquérito que foi dito um inquérito maldito”. Foi ele o responsável por autorizar a abertura de ofício — à revelia da inação da PGR (Procuradoria-Geral da República), sob Augusto Aras — do inquérito das fake news, comandado por Alexandre de Moraes desde março de 2019.

“Só eu e o ministro Alexandre de Moraes sabemos o que passamos”, comentou Toffoli.


Os desertos que passei. Dias Toffoli rebateu críticas do passado (Rosinei Coutinho/SCO/STF)

Ao responder às críticas mais uma vez, o ministro levantou uma plaquinha de “eu avisei”. Dias Toffoli sustentou o autoelogio com uma autocitação, relendo parte do voto que deu quando o plenário decidiu, por 10 a 1, manter aberto o inquérito das fake news.

“Quiseram banalizar a política, banalizar a democracia, banalizar a liberdade de imprensa, banalizar a liberdade de expressão. Quiseram banalizar o mal. Plantam o medo para colher o ódio, plantam o ódio para colher o medo. Não se impressionam em contar mortos”, rememorou.

“Querem o confronto como forma de dominação. A desinformação como uma nova religião. E o caos como um novo ‘deus’.”

Dois ministros que não compunham o STF quando o plenário referendou o inquérito das fake news tendem a discordar dessa tese.

  • Indicado por Jair Bolsonaro (PL) e empossado em plena pandemia, em novembro de 2020, o ministro Kassio Nunes Marques votou por absolver golpistas sob o argumento de que o golpe de Estado não se consumou, o que descaracterizaria o crime;
  • A tipificação fala em “tentar, por meio da força ou violência, abolir o Estado Democrático de Direito” — ou seja, só a tentativa já é suficiente;
  • Aliás, faltou ao ministro explicar como o STF julgaria o crime no cenário em que o golpe de Estado que pedia a dissolução da corte tivesse sido bem-sucedido;
  • Já André Mendonça, ex-advogado-geral e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro que chegou ao STF em dezembro de 2021, insinuou que o atual governo facilitou a destruição das sedes dos três Poderes;
  • A fala do ministro ecoa a versão mentirosa mais difundida nas redes extremistas desde o 8 de janeiro.

É graças à TV Justiça e ao regimento do STF que a população sabe que dois ministros do tribunal minimizam uma tentativa de golpe de Estado tão flagrante quanto a ocorrida em Brasília há apenas oito meses.

A opinião esdrúxula de que “a sociedade não tem que saber como vota um ministro”, expressada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), não para de pé diante de votos como os de Nunes Marques e André Mendonça.

Esse tipo de sigilo só serviria para abrigar no aconchego do breu eterno decisões constrangedoras ao olhar da sociedade. A história de criação da TV Justiça — exaltada por ministros na semana passada como exemplo de transparência — serve como alerta nesse sentido.

No livro “Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises” (Cia. das Letras), os jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber narram que no lançamento da emissora, em 2002, “o então presidente do Supremo, Marco Aurélio Mello, enfrentou resistência internas, com ameaças de motim”.

“Como presidente, sabia que perderia caso submetesse [aos demais ministros] a ideia de criação da TV Justiça. A lei que criou o canal foi aprovada pelo Congresso a partir da iniciativa do deputado Chiquinho Feitosa, irmão da assessora de Marco Aurélio e mais tarde mulher de Gilmar Mendes, Guiomar Feitosa”, registra a obra.

As sessões eram editadas, até que, em 2003, a versão que foi ao ar de uma briga no plenário desagradou o ministro Maurício Corrêa, então presidente do tribunal, que havia discutido com Moreira Alves. Por isso, ele determinou que os julgamentos passassem a ser transmitidos ao vivo — sem edição.


Vinte anos depois, vídeos da TV Justiça somam dezenas de milhões de visualizações — replicados, remixados ou deturpados por inúmeros canais, em todas as plataformas. Versões curtas pipocam no Instagram e no Kwai, no TikTok e no YouTube Shorts, além de circularem em aplicativos de mensagens.

Um levantamento feito com o YouTube Data Tools no canal da TV Justiça mostra que a audiência não segue os temas mais quentes em debate no plenário, ao contrário do que ocorre com conteúdos sobre o tribunal vindos de outras fontes.

Com 37 mil visualizações, o vídeo de maior audiência trata sobre precatórios, um tema relevante em discussão na corte, mas que não recebe tanta atenção — indício de que quem procura o canal não é o brasileiro médio.

Os próprios ministros, é claro, protagonizam parte do entretenimento. São cenas que vão desde Ricardo Lewandowski dizendo a Joaquim Barbosa que “não será vossa excelência que me dirá o que fazer”, até Luís Roberto Barroso descrevendo Gilmar Mendes como “uma pessoa horrível”, “uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”.

Esses episódios encontram ressonância no calculado “tenha dó” que Alexandre de Moraes proferiu a André Mendonça, que ganhou destaque recente na imprensa e somou curtidas nas redes.

Por vezes, os vídeos da TV Justiça servem também para embasar ataques ao próprio STF, aspecto que não passou despercebido nos julgamentos.

“Bendita democracia, que permite que venham aqui e digam contra nós, a nós mesmos, assegurados por nós”, comentou a ministra Cármen Lúcia, ao notar advogados que aproveitaram a audiência nacional mais para atacar o tribunal do que para defender seus clientes.

Esses tipos de conteúdo renderam no YouTube títulos como “advogado enquadra ministros do STF”, com 145 mil visualizações, e “advogado lava a alma do brasileiro no STF”, com 196 mil visualizações.


Condenai-vos. Cármen Lúcia reprovou a falta de postura de advogados (Rosinei Coutinho/SCO/STF)

Tempos extraordinários servem de justificativa para quase tudo. E se uma pandemia global sob um governo de extrema-direita e negacionista — com método industrial para espalhar mentiras na internet — não são tempos extraordinários, nem imagino o que sejam.

O propósito original do inquérito das fake news, em março de 2019, era investigar desinformação coordenada “contra os membros da Suprema Corte e seus familiares”.

O regimento permite a abertura de investigação de ofício em caso de suspeita de crime cometido nas dependências do tribunal, e Dias Toffoli interpretou naquele momento que a definição abarcaria ataques e ameaças pela internet.

O inquérito se tornou um instrumento de autoproteção da corte, incorporando novas linhas investigativas com o passar do tempo, principalmente após as ações do governo Bolsonaro durante a pandemia.

Agora, as apurações abarcam a delação de Mauro Cid e servem como justificativa para manter as investigações contra o ex-presidente no STF, não na primeira instância.

“Quando o inquérito foi aberto, o que parecia estar em jogo era mais uma crítica institucional ou algumas fake news que apareciam aqui ou acolá, não uma coisa sistemática para minar a credibilidade do tribunal”, relembra à Plataforma Felipe Recondo, que neste mês lançará em coautoria com Luiz Weber o livro “O Tribunal: como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária” (Cia. das Letras).

“Muitas das decisões que o ministro Alexandre de Moraes tomou nos seus inquéritos nos surpreenderam por questões técnicas, por questões que pareciam avançar sobre pessoas que não necessariamente estariam envolvidas nos acontecimentos”, diz Recondo. “Mas as provas ou os fatos obtidos iam justificando a posteriori algumas dessas decisões.”

“Moraes vai nos dizer e justificar que ele tinha conhecimento desses fatos anteriormente e por isso ele deu a decisão. É muito difícil, dada a extensão das investigações, precisar o que foi justificado a posteriori e o que havia de fato de justificativa para uma medida mais invasiva, como uma quebra de sigilo, uma busca e apreensão.”

No plenário, o decano Gilmar Mendes aproveitou as lentes da TV Justiça para comentar: “Eu não canso de ressaltar o tamanho da dívida que o país tem para com o ministro Alexandre e ressalto também a importância que teve a decisão do nosso colega ministro Dias Toffoli, quando inicialmente tomou a decisão de abrir o inquérito”.


Favorito para a vaga de Rosa Weber, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), acenou ao chefe ao desinformar sobre como funcionam os votos na Suprema Corte dos Estados Unidos.

Em campanha, ele difunde uma ideia sem aderência social, tendo como único público-alvo o ocupante do Palácio da Alvorada. Dino sabe que, caso seja indicado por Lula, aprovado pelo Senado e se torne ministro do STF, irá encarar contestações públicas às decisões que vier a proferir — assim como ocorre com o ministro Cristiano Zanin.

Dino terá então a chance de transportar ao plenário a verve que demonstrou ao contestar parlamentares da oposição como subordinado do presidente. Tudo ao vivo, pela TV Justiça. Às claras, como convém numa democracia inabalada.

Topo

Usamos cookies e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade. Ao continuar navegando, você concordará com estas condições.