🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Setembro de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Plataformas dizem defender liberdade, mas modelo remonta à colonização britânica

Por Tai Nalon

22 de setembro de 2023, 11h50

Aviso: este texto é uma análise e foi publicado originalmente na newsletter O Digital Disfuncional.

Em fevereiro de 2022, as plataformas Google, Facebook, Instagram, Twitter e Mercado Livre assinaram juntas uma nota pública em que afirmavam que o PL 2.630/2020, que pretende regular plataformas digitais, representava “uma potencial ameaça para a internet livre, democrática e aberta”. O texto do projeto de lei de então era radicalmente diferente do atual, mas já pautava uma retórica divisiva revisitada durante os debates na Câmara em abril deste ano, quando, em nota, o Google afirmou que a proposta poderia mudar “a internet que você conhece para pior”.

A preocupação das plataformas com a liberdade, no entanto, parece ser apenas cosmética. O site Rest of World publicou em abril uma reportagem que mostra como o ex-Twitter, sob Elon Musk, tem curvado-se cada vez mais à censura e ao autoritarismo de governos nacionais. Conforme a apuração, um ano antes de Musk assumir o comando da plataforma, a empresa havia se adequado a 50% das exigências de remoção de conteúdo ou acesso a dados de usuários. De outubro de 2022 a abril de 2023, essa percentagem cresceu para 83%. As ordens vêm sobretudo do governo ditatorial de Recep Tayyip Erdogan, na Turquia.

Em 2018, uma representante do Conselho de Direitos Humanos da ONU pediu ao Facebook que reformasse o conceito de terrorismo adotado pela plataforma. Segundo Fionnuala Ní Aoláin, a terminologia da plataforma tratava de modo inadequado qualquer grupo não estatal que usasse de violência para subverter a ordem, classificando-o como terrorista. Isso poderia, por exemplo, vulnerabilizar organizações opositoras de regimes autoritários, como na Síria, na Turquia e na Nicarágua.

Em 2021, o Intercept gringo publicou uma reportagem que mostra como o Facebook mantinha uma “lista secreta” de pessoas “perigosas”. Conforme o texto, essa lista abrangeria 4.000 indivíduos e grupos, incluindo políticos, escritores, instituições de caridade, hospitais, centenas de conjuntos musicais e figuras históricas mortas há muito tempo. As ações contraterroristas da plataforma se baseariam sobre conexões com essas personalidades.

“A política do IOP [indivíduos e organizações perigosas] e a lista proibida também são muito mais frouxas em relação a comentários sobre milícias antigovernamentais predominantemente brancas do que quanto a grupos e indivíduos listados como terroristas, que são predominantemente do Oriente Médio, do Sul da Ásia e muçulmanos, ou aqueles que supostamente fazem parte de grupos criminosos violentos, que são predominantemente negros e latinos”, diz a reportagem.

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Num ensaio que produzi em 2021 para o livro “Reconstrução: o Brasil nos anos 20” (SaraivaJur), organizado pelos colegas Felipe Salto, João Villaverde e Laura Karpuska, comparei o poder das gigantes empresas de tecnologia e a influência exercida no passado por empresas transnacionais coloniais, como a Companhia das Índias Orientais Britânicas, sobre o mundo. Essa ideia é mencionada no artigo “Social Media States”, do historiador Brendan Mackie, da Universidade da Califórnia em Berkeley, publicado na Noema Magazine de julho de 2021. Segundo ele, essas plataformas detêm dois tipos de autoridade semelhante à de um Estado: um monopólio efetivo sobre a sociedade civil e a esfera pública, bem como o poder de vigilância e controle. Como resultado, ele cunhou o termo “redes sociais-Estado” — ou “social media states”, como diz o título.

A concepção de que empresas transnacionais estavam imitando o modelo estabelecido pelas empresas coloniais já havia sido proposta pelo historiador Nick Robins, para quem a Companhia das Índias Orientais era “a ligação entre o conceito medieval de corporação como uma organização fundamentalmente pública e o modelo industrial de empresa que opera exclusivamente no interesse de seus acionistas”.

Fundada em 1600 por ordem da rainha Elizabeth 1ª, a empresa começou como uma espécie de concessão para estabelecer um monopólio comercial com as Índias Orientais para um grupo de 218 investidores. Portanto, a empresa oscilava entre um modelo público e privado, com autonomia concedida pelo Estado para dominar territórios, manter um monopólio de poder e arrecadar impostos.

O que torna as plataformas digitais particularmente semelhantes às empresas coloniais, na visão de Mackie, é a maneira com que elas abordam problemas semelhantes. Elas tomam decisões que resolvem unicamente demandas particulares, em vez de dedicar recursos às consequências públicas dos seus atos. O historiador destaca um exemplo histórico em que a Companhia das Índias Orientais aumentou os impostos nas províncias indianas de Bengala, Bihar e Orissa, em 1765, para enriquecer seus acionistas. O resultado foi uma grande fome em 1769, que causou a morte de 1 milhão a 10 milhões de pessoas — algo em torno de um terço da população local.

No caso das empresas de tecnologia, o desafio de gestão reside, por exemplo, na moderação de conteúdo. Esses esforços têm tornado as redes sociais mais acolhedoras, aumentando o envolvimento e, consequentemente, gerando mais receita — mas essa abordagem é considerada bem-sucedida apenas do ponto de vista da empresa. Naquela nota publicada em abril deste ano, durante os debates do PL 2.630/2020, o Google afirma que suas plataformas — como YouTube e anúncios, suas maiores fontes de entrada —, geraram R$ 104,5 bilhões no Brasil em 2021. Não diz, porém, que seu modelo de negócios facilita, por exemplo, o patrocínio de propaganda enganosa e a monetização de sites que pediam intervenção militar.

Nick Robins aponta que uma das razões pelas quais a Companhia das Índias Orientais foi extinta está relacionada ao seu comportamento predatório. Em menos de 20 anos, de 1757 a 1772, a empresa passou do auge à falência, levando ao surgimento de movimentos no Parlamento britânico em favor de sua reforma.

Mackie não defende a regulação como solução para os problemas supranacionais gerados pelas plataformas. Diz, em vez disso, que o incentivo a maior “democratização” poderia vir de mecanismos de votação sobre “decisões controversas, como banir Donald Trump”. A julgar pela capacidade dos estadunidenses de organizar processos eletivos e de produzir retórica antidemocrática contra o próprio sistema, a solução parece mesmo ser a de permanecer sem solução.

No hemisfério de cá, resta saber como criar mecanismos de regulação que se adequem às realidades locais. O InternetLab está produzindo uma série de análises sobre o DSA, no qual o PL 2.630/2020 busca inspiração, para entender se as demandas das democracias europeias são compatíveis com o nosso modelo de regulação local. Questões como a exigência de acesso a dados por pesquisadores com financiamento precário e a necessidade de auditagem independente em sociedades historicamente identificadas com a corrupção corporativa são alguns dos temas abordados. Vale a leitura.

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