Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Para defender ‘PL do Aborto’, Sóstenes recicla mentira sobre uso de fetos na indústria de cosméticos

Por Ethel Rudnitzki e Luiz Fernando Menezes

18 de junho de 2024, 13h14

Uma das desinformações sobre o direito ao aborto mais virais no mundo é a de que a Pepsi usaria fetos abortados para produzir adoçantes. A história é absurda e já foi desmentida por diversas agências de checagem. Em meio à discussão do PL 1.904/2024, conhecido como “PL do Aborto”, uma teoria conspiratória semelhante passou a circular nas redes depois que o autor do projeto, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), publicou um vídeo mentiroso sobre o assunto no último domingo (16).

Na gravação, que até o momento acumula 66,5 mil curtidas e 730 mil visualizações no Instagram e 258 mil visualizações no X até a manhã desta terça-feira, o deputado diz:


Selo falso

“Há uma indústria mundial liderada por um senhor chamado George Soros, um milionário americano que patrocina mundo afora o aborto, o assassinato de bebês indefesos. Sabe por quê? Porque eles vivem de empresas também que dependem do feto humano para fabricar cosméticos” — deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor do PL 1.904/2024, em vídeo publicado nas redes.

Isso não é verdade. O deputado se baseia em reportagens antigas e denúncias falsas sobre organizações de direitos reprodutivos no Reino Unido e nos Estados Unidos para sugerir que existe uma indústria mundial que utiliza fetos abortados para produzir cosméticos.

Cavalcante faz crer que várias empresas comercializariam partes de fetos humanos, ao compartilhar três textos publicados na imprensa brasileira:

  • Uma resenha publicada em abril de 2008 pelo escritor Carlos Heitor Cony na Folha de S.Paulo sobre o livro “Bebês para Queimar”, publicado na Inglaterra em 1974, e que acusava o BPAS (British Pregnancy Advisory Service) de vender fetos para empresas de cosméticos;
  • Uma reportagem do jornal O Globo de julho de 2015, que dizia respeito a uma denúncia envolvendo a ONG americana de direitos reprodutivos Planned Parenthood. Na época, havia sido divulgado um vídeo editado no qual a presidente da associação, Deborah Nucatola, supostamente explicava como funcionava a venda de tecido fetal;
  • E outra reportagem, também sobre a Planned Parenthood, publicada na BBC Brasil em agosto de 2015.
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O deputado omite que as reportagens citadas trazem informações que se revelaram, mais tarde, falsas. O livro citado em 2008, por exemplo, foi desmentido ainda na década de 1970. Os dois autores — Michael Litchfield e Susan Kentish — confessaram ter distorcido entrevistas e feito falsas alegações e foram punidos por mentir.

No museu britânico Wellcome Collection, que reúne informações sobre discussões médicas e científicas da sociedade, há um resumo do caso:

“Descobriu-se que grande parte do conteúdo do livro se baseava em evidências enganosas, conforme revelado em um artigo do Sunday Times, 'Contos de terror sobre aborto revelados como fantasias' [artigo publicado em 1975]. Os autores retiraram as suas alegações contra o BPAS numa declaração em tribunal aberto em 18 de Janeiro de 1978. Eles 'pedem desculpas por qualquer sofrimento e dano' que as suas alegações tenham causado e ‘reconhecem que o BPAS exerce o maior cuidado no emprego de médicos qualificados e na seleção e formação dos seus conselheiros’.”

Capa do livro 'Babies for Burning' de Michael Litchfield e Susan Kentish
Livro desinformativo. Conteúdo da obra lançada em 1974 foi questionado na Justiça britânica e autores foram penalizados (Reprodução)

Sóstenes Cavalcante também desinforma quando cita o caso da Planned Parenthood, desmentido há anos. No vídeo completo, sem edições, é possível ver que a presidente da organização afirma que não comercializa tecido fetal porque isso configura crime. O preço de US$ 30 a US$ 100 dólares citado por ela nos vídeos é referente aos custos de manuseio e transporte dos tecidos doados.

Nos Estados Unidos, a lei proíbe a venda de tecidos de fetos abortados, mas permite que eles sejam doados para instituições de pesquisa desde que haja aprovação da mulher que realizou o procedimento.

Aqui no Brasil, de acordo com Henderson Fürst, presidente da Comissão de Bioética da OAB-SP, a legislação é semelhante: a venda de órgãos de fetos é proibida e sua doação não pode ter outro fim que não o transplante ou doação para pesquisa científica.

No site oficial do Partido Democrata, há um resumo de todas as desinformações referentes ao caso. Uma das conclusões é que “os vídeos não incluem nenhuma evidência confiável de que a Planned Parenthood lucre com seu programa de doação de tecidos fetais”.

Print do vídeo mostra diretora da Planned Parenthood sendo gravada sem seu consentimento enquanto está numa mesa de jantar
Prova forjada. Câmera escondida gravou diretora da ONG na época, e ativistas contra o aborto editaram para distorcer suas declarações (Reprodução)

Em 2019, o grupo responsável pela denúncia contra a Planned Parenthood foi condenado a pagar uma multa de US$ 2,3 milhões à ONG por gravar e manipular ilegalmente vídeos sobre o caso. “O júri reconheceu hoje que aqueles que estão por detrás da campanha infringiram a lei para avançarem nos seus objectivos de proibir o aborto legal e seguro neste país e para impedir que a Planned Parenthood sirva os pacientes que dependem de nós”, afirmou a Planned Parenthood após a decisão.

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Além das empresas, o deputado também acusa o filantropo bilionário George Soros de “patrocinar o aborto”. No vídeo, o deputado não cita provas dessa alegação, limitando-se a exibir uma foto do investidor — que é alvo de diferentes peças desinformativas e teorias da conspiração.

A Open Society Foundations, fundada por Soros e comandada por seu filho, Alex, anunciou que iria destinar US$ 50 milhões neste ano para aumentar o engajamento cívico de jovens e mulheres nos Estados Unidos. Entre as organizações beneficiadas pelo investimento estão a Planned Parenthood e Centro Nacional de Direito de Mulheres, que advogam por direitos reprodutivos no país. Não há, no entanto, ligações entre a fundação de Soros e empresas de cosméticos.

Procurada na última segunda-feira (17), a fundação disse que as alegações feitas pelo deputado "são uma fake news antiga e já desmentida várias vezes pela própria imprensa e pela Justiça. A Open Society Foundations é uma instituição que defende os direitos humanos, a democracia e a justiça".

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A discussão sobre o PL do Aborto foi marcada pelo uso de desinformação. Como mostrou o Aos Fatos, o projeto, além de ter sido copiado de um site conspiracionista, também mente em sua justificativa: o texto usa conceitos datados da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Ministério da Saúde para defender que o aborto só poderia ocorrer até as 22 semanas de gestação, quando, na verdade, as instituições já revisaram suas posições e hoje defendem que não deveria haver limite gestacional.


Outro lado. Procurado na manhã desta terça-feira (18), o deputado Sóstenes Cavalcante disse que mantém sua posição e que acredita que é importante discutir questões éticas e morais relacionadas à indústria de cosméticos e ao uso de materiais biológicos: “Minha intenção é chamar a atenção para a necessidade de uma investigação rigorosa e uma regulamentação mais transparente sobre os ingredientes utilizados nos produtos de consumo”.

Referências:

1. CBS News
2. Polígrafo
3. Câmara dos Deputados
4. Folha de S.Paulo
5. O Globo
6. BBC Brasil
7. Goodreads
8. Wellcome Collection
9. The Intercept Brasil
10. FactCheck.org
11. Cornell Law of School
12. Commitee of Oversight Accountability Democrats
13. Independent
14. Aos Fatos (1, 2 e 3)
15. AP


Esta reportagem foi atualizada às 15h35 do dia 18 de junho de 2024 para acrescentar o posicionamento da Open Society Foundations.

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