Parlamentares brasileiros importam mentiras dos EUA para negar existência de crianças trans

Por Amanda Ribeiro e Luiz Fernando Menezes

20 de junho de 2024, 13h58

No último dia 4 de junho, dois dias depois da Parada do Orgulho LGBT+ em São Paulo, três deputados foram à tribuna da Câmara para afirmar que crianças transgênero não existem. As falas eram uma resposta direta a um bloco que desfilou pelo evento na avenida Paulista carregando uma faixa com os dizeres “crianças trans existem”.

Os discursos ecoam falas já repetidas por parlamentares brasileiros nos últimos dois anos. Aos Fatos encontrou ao menos 18 discursos na base da Câmara, desde o início da atual legislatura, que atacam a identidade de jovens trans ou os protocolos de saúde e acolhimento desenvolvidos para atendê-los.

O movimento também se reflete na pauta da Câmara: a reportagem identificou ao menos seis projetos de lei apresentados desde o ano passado que vedam a participação de jovens em eventos como a Parada LGBT+ ou proíbem terapias como a hormonização, autorizada pelo Ministério da Saúde e destinada a uma faixa etária específica e restrita de adolescentes mediante vários critérios.

Leia mais
WHATSAPP Inscreva-se no nosso canal e receba as nossas checagens e reportagens

A ofensiva no Congresso remete a uma estratégia que tem sido usada por políticos conservadores americanos, em especial o ex-presidente Donald Trump, ao menos desde 2022: a de usar crianças para ampliar a repercussão de uma agenda de pânico moral.

No ano passado, falas de parlamentares brasileiros com essa abordagem também se intensificaram logo após a Parada do Orgulho, quando imagens do bloco de apoio às crianças trans viralizaram nas redes. Organizado pela fundadora da ONG Minha Criança Trans, Thamyris Nunes, o desfile foi alvo de ataques de grupos conservadores nas redes e no plenário.

Na semana que se seguiu ao desfile daquele ano, parlamentares como Delegado Palumbo (MDB-SP) subiram ao púlpito da Câmara para afirmar que uma criança “mudando de sexo” era “uma aberração” e “uma coisa do demônio”. Também discursaram na época nomes como Otoni de Paula (MDB-RJ) e Nikolas Ferreira (PL-MG) — o deputado mineiro se envolveu em outros episódios de transfobia desde o início do mandato (veja aqui e aqui).


Crianças vestindo roupas nas cores branco, azul e rosa brincam com brinquedos diversos atrás de faixa ‘crianças e adolescentes trans existem’
Parada do orgulho. Bloco das crianças e adolescentes trans também esteve presentes na edição de 2023 do evento LGBTQIA+ em São Paulo (Rovena Rosa/Agência Brasil)

CRIANÇAS TRANS EXISTEM?

Sim, e isso é reconhecido nacional e internacionalmente por organizações e especialistas. A OMS (Organização Mundial da Saúde) tem uma definição específica para casos de crianças com disforia de gênero — situação vivida por indivíduos que não sentem que seu gênero é adequado às suas características físicas. A condição é caracterizada como uma questão de saúde sexual.

Apesar das evidências presentes na literatura científica, parlamentares brasileiros têm repetido em seus discursos e propostas legislativas argumentos que negam a existência de crianças trans. Uma das alegações é que crianças não têm a personalidade e o cérebro formados, e portanto estão suscetíveis a serem controladas e manipuladas por adultos por meio da “ideologia de gênero” — que não existe.

Leia mais
Checamos Deputados usam audiência pública para espalhar mentiras e discurso de ódio contra pessoas trans

“Uma criança, por definição, não tem a sua personalidade formada. Uma criança, por definição, não tem o seu cérebro formado. Não é possível a afirmação de que crianças são trans. Isso é absurdo! Essa é a demonstração de que mães e pais estão utilizando a imagem de crianças para realizar militância política”, afirmou o deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP) na sessão do último dia 4.

O psiquiatra, professor e pesquisador em sexualidade e transgeneridade Alexandre Saadeh afirmou ao Aos Fatos que essas alegações não têm embasamento científico. “Claro que as crianças ainda não têm a personalidade formada, mas já têm os princípios básicos de desenvolvimento, e o cérebro está em perfeita formação”, explicou. “Elas têm um nome, reconhecem seu sexo, podem falar sobre a sua identidade de gênero. Se não um menino cis não poderia falar que é um menino.”

Card com frase da SBP: ‘Embora mais nítido aos 2 anos, crianças de 17 a 21 meses de vida têm habilidade de se identificar como meninos ou meninas e apresentam brincadeiras relacionadas ao gênero. A identidade de gênero tem início entre 2-3 anos de idade. Entre 6-7 anos, a criança tem consciência de que seu gênero permanecerá o mesmo.”

Outra estratégia recorrente é a de usar mentiras para atacar o processo transexualizador e os protocolos de atendimento a crianças e adolescentes transgênero. Em discurso no ano passado, o deputado Otoni de Paula alegou que “crianças com idade a partir de quatro anos passam por processo de transexualização” em um ambulatório da USP e que, conforme a necessidade, é feita a “colocação de implantes ou readequação da genitália” em jovens.

Argumentos similares também constam em projetos de lei enviados ao Congresso. Ignorando que a cirurgia de afirmação de gênero é destinada apenas a maiores de idade, o PL 4.524/2023, da suplente Priscila Costa (PL-CE), pune com quatro a oito anos de reclusão aqueles que permitirem que crianças e adolescentes façam “qualquer tratamento por meios químicos, hormonais, cirúrgicos ou outros visando à mudança de sexo biológico”.

As alegações se baseiam em premissas enganosas:

  • A portaria 2.803/2013 do Ministério da Saúde, que rege o processo transexualizador no Brasil, determina que um indivíduo só pode passar pela cirurgia de afirmação de gênero a partir dos 18 anos — pelo SUS, a operação só pode ocorrer a partir dos 21;
  • Antes disso, o CFM (Conselho Federal de Medicina) orienta que adolescentes entre 16 e 17 anos podem passar por um processo em que recebem hormônios para adequar seus corpos ao gênero com o qual se identificam. A indicação é feita respeitando vários critérios, e o processo só pode ocorrer com o aval de uma equipe de saúde multidisciplinar;
  • Já os mais jovens — entre oito e 13 anos, no caso de crianças com características biológicas femininas, e entre nove e 14 anos em indivíduos com características masculinas — podem, desde que atendam a diversos critérios e participem de protocolos de pesquisa em instituições de referência, receber bloqueadores hormonais que evitam com que entrem na puberdade.
Leia mais
Nas Redes É mentira que STF proibiu pessoas trans de usarem banheiros de acordo com identidade de gênero

O processo de atendimento e acolhimento a crianças e adolescentes trans, no entanto, vai muito além de hormônios e medicação. Nesses casos, especialistas consultados pelo Aos Fatos apontam que é importante fortalecer a rede de apoio para que os jovens cresçam em segurança.

Card com frase de Andrea Hercowitz: “Quando são crianças, o que se faz é recebê-las, escutar suas histórias, ouvir as suas autodeterminações de identidade de gênero. E o que se faz é tentar tornar o ambiente onde elas vivem acolhedor. A gente faz grupos de orientação de escolas, a gente faz grupos de famílias, onde elas vão trocar experiências, tentar orientar e acolher aquelas que estão entrando no processo naquele momento, ainda assustadas, às vezes rejeitando seus próprios filhos.”

No Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), da USP, referência nacional em casos de disforia de gênero, jovens trans são atendidos por pediatras, psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, nutricionistas, fonoaudiólogos e até preparadores físicos.

A INFLUÊNCIA DOS EUA

“Nenhum país sério deveria dizer às suas crianças que eles nasceram com o gênero errado, um conceito que nunca foi ouvido na história da humanidade. Ninguém nunca ouviu falar disso. O que está acontecendo hoje foi criado pela esquerda radical poucos anos atrás”, disse o ex-presidente americano Donald Trump, que tentará se reeleger neste ano, em fevereiro do ano passado.

O posicionamento marca uma radicalização do discurso do político que, antes de ser eleito em 2016, chegou a dizer que protegeria os LGBTQIA+ caso chegasse ao poder: na Convenção Republicana, em julho de 2016, o então candidato segurou a bandeira da comunidade e disse que era contra o banimento de pessoas trans em banheiros do gênero com o qual se identificam.

Donald Trump sorri e segura uma bandeira LGBTQIA+ com os dizeres: ‘LGBTs por Trump’
'LGBTs por Trump.' Durante a campanha de 2016, Donald Trump alegou que defenderia os direitos da população trans (Reprodução/X)

Os posicionamentos do republicano, no entanto, mudaram radicalmente a partir do momento em que foi eleito. Em 2017, Trump revogou a orientação aprovada no governo Obama permitindo que, dentro das escolas, estudantes usassem os banheiros segundo sua identidade de gênero. Em 2018, o Departamento de Saúde anunciou a intenção de definir gênero como uma condição biológica e imutável, determinada pelo órgão sexual no nascimento.

Apesar de já ter defendido medidas restritivas contra a população trans de um modo geral em seu mandato anterior, Trump agora tem adotado como alvos principais as políticas voltadas a crianças e adolescentes:

  • Em março de 2023, ele prometeu que, caso eleito, acabaria com a “castração química e mutilação sexual” das crianças;
  • Meses depois, em junho, disse que atletas transgênero seriam “doentes” e “perturbados”. Nesse discurso, ele mesmo comentou como fica maravilhado com a reação de seus eleitores: “Veja, estou falando em cortar impostos, as pessoas fazem isso [encena fracos aplausos]. Mas você menciona transgêneros, todo mundo enlouquece”;
  • Na mesma época, Trump apresentou um programa de “10 pontos para proteger as crianças da insanidade de gênero da esquerda”. Nele, ele compara a transição de gênero a abuso infantil e promete acabar com as políticas voltadas ao processo;
  • Em maio de 2024, ele prometeu acabar com programas federais “que promovam o conceito de sexo e transição de gênero em qualquer idade”, inclusive o projeto do governo Biden que impede a discriminação contra LGBTQIA+ em escolas.
Leia mais
BIPE Imagens manipuladas ou fora de contexto geram discurso de ódio contra Parada LGBT+

A radicalização de Trump nos últimos anos tem sido acompanhada por um movimento republicano de tentar endurecer — ou até extinguir — políticas públicas voltadas às crianças trans. Um dia depois de o ex-presidente comparar afirmação de gênero à “castração química”, por exemplo, a deputada Marjorie Taylor Greene anunciou que iria tentar aprovar uma lei para criminalizar médicos que fizessem o procedimento. Meses depois, o governador da Flórida, Ron DeSantis, também levantou a bandeira antitrans ao acusar os professores de “forçar crianças a escolher pronomes”.

Entre 2021 e junho de 2023, segundo levantamento do jornal The New York Times, 16 estados americanos aprovaram restrições ou banimentos para procedimentos de afirmação de gênero em menores de idade.

Argumentos e expressões semelhantes aos usados por Trump têm aparecido nas falas de congressistas brasileiros. Bilynskyj, por exemplo, citou que nos Estados Unidos “há centenas de casos de tentativas de reversão de cirurgias e tratamentos hormonais que são desastrosos”. “Nós não podemos permitir que crianças sejam submetidas a tratamentos irreversíveis, a tratamentos mutilantes”, defendeu.

Priscila Costa (PL-CE) fez a afirmação falsa de que o movimento LGBTQIA+ “defende que crianças trans existem, defende bloqueadores hormonais para adolescentes, castração química para adolescentes”. Em audiência pública na Câmara, em junho do ano passado, várias alegações preconceituosas e desinformativas também se basearam em dados vindos dos Estados Unidos.

Deputada Júlia Zanatta compartilha, em seu Instagram, vídeo que diz que pediatras americanos seriam contra transição em crianças e adolescentes
Pediatras transfóbicos. Vídeo de grupo de médicos americanos negacionistas foi compartilhado por políticos brasileiros (Reprodução/Instagram)

Há, inclusive, deputados que compartilharam vídeos em inglês para condenar a transição de gênero. Um exemplo é a deputada Júlia Zanatta (PL-SC), que publicou um posicionamento do ACPeds, grupo de pediatras americanos que se posiciona contra a transição de gênero, o casamento homoafetivo e a vacinação. O mesmo registro foi compartilhado por Elon Musk no X.


Outro lado. Aos Fatos procurou a assessoria dos deputados citados no texto na tarde da última quarta-feira (19) para que eles pudessem comentar a reportagem, mas nenhum deles respondeu.

Referências:

1. Folha de S.Paulo (1 e 2)
2. UOL
3. g1
4. OMS
5. MDH
6. Aos Fatos (1 e 2)
7. Câmara dos Deputados (1, 2, 3 e 4)
8. Ministério da Saúde
9. IPqHC-USP
10. DonaldJTrump.com
11. Vox
12. abc News
13. The New York Times (1 e 2)
14. C-Span
15. The Atlantic
16. Forbes
17. The Guardian
18. The New Republic

Topo

Usamos cookies e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade. Ao continuar navegando, você concordará com estas condições.