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Fim do Crowdtangle exige revisão de mecanismos de transparência das plataformas

Por Tai Nalon

15 de março de 2024, 12h59

Aviso: este texto é uma análise e foi publicado originalmente na newsletter O Digital Disfuncional.


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🌒 Anoiteceu nas plataformas

A Meta oficializou nesta quinta-feira (14) o encerramento das atualizações do Crowdtangle, ferramenta de monitoramento e análise de dados do Facebook e do Instagram cujo fim era esperado há pelo menos dois anos. Em nota, a empresa diz que irá lançar novas ferramentas de compartilhamento de dados, chamadas Meta Content Library e Content Library API, para “cumprir novas determinações regulatórias”.

Em dezembro, a repórter do Aos Fatos Ethel Rudnitzki explicou na newsletter do Radar que, devido ao sucateamento da ferramenta, a Redação usava cada vez menos o dispositivo como recurso de investigação. No Brasil, a Meta havia desmobilizado grande parte da equipe do Crowdtangle responsável pela interlocução com jornalistas e pesquisadores ainda em 2022, mas nunca havia confirmado publicamente que a dispensa desses profissionais tinha a ver com o fim das operações da plataforma.

A interrupção das funções do Crowdtangle é preocupante porque pouco se sabe sobre quem estará autorizado a acessar os dados da API da nova ferramenta e qual é a qualidade dos dados ali disponíveis. A Meta já anunciou que organizações de checagem de fatos parceiras, como o Aos Fatos, terão acesso à Content Library, mas não há indicativo de que o mesmo se aplique ao acesso à API.

Acessar a API de uma ferramenta como essa é importante porque nem todos os dados das plataformas monitoradas são visíveis por uma única interface pública. API é a abreviação da expressão “interface de programação de aplicações”, que funciona como uma espécie de bocal de tomada por meio da qual se puxam dados brutos para serem organizados de maneira personalizada por ferramentas de terceiros. Desde o lançamento do algoritmo preditivo de desinformação desenvolvido pelo Aos Fatos em 2020, a ferramenta pública do Radar escora-se parcialmente na API do Crowdtangle para manter seu monitor atualizado.

Desde a sua concepção, Aos Fatos tem demonstrado que não é possível basear o trabalho de combate à desinformação apenas em checagem de fatos e investigações pontuais sobre campanhas de influência nas plataformas digitais. Foi porque empresas como a Meta e o ex-Twitter eram muito mais transparentes no fim da década passada, que construímos não só o algoritmo e o monitor do Radar Aos Fatos, mas também a unidade de inteligência e investigação do site. Ela foi e é responsável por dezenas de investigações de impacto, dentre as quais:

  • A reportagem que mostrou, junto com o Washington Post, o volume de dados com retórica golpista que circulou nas redes sociais de março de 2021 às vésperas do ataque de 8 de janeiro de 2023;

  • A investigação que cruzou dados entre WhatsApp e Telegram com links para sites com desinformação eleitoral em 2022, alcançando ao menos 30 milhões de usuários — fato repercutido em publicações estrangeiras, como a ProPublica;

  • O levantamento que, durante a pandemia de Covid-19, mediu o alcance de publicações de políticos, como o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), e de empresários, como Luciano Hang, que disseminavam desinformação sobre a doença. Investigações do Radar Aos Fatos sobre esses temas foram parar no relatório final da CPI da Covid-19;

  • As investigações que demonstraram a reiterada leniência de plataformas, sobretudo YouTube e Twitter, com desinformação eleitoral e antivacina — e que forçaram essas plataformas a agir contra esse tipo de ação coordenada, ainda que pontualmente.

O anoitecer dos dados das plataformas está em curso de maneira mais acentuada há cerca de um ano, quando o ex-Twitter anunciou que o acesso à sua API seria pago — e que valores exorbitantes seriam cobrados de grupos de pesquisa e equipes de jornalismo investigativo como o Aos Fatos, o que na prática inviabiliza esses trabalhos de fiscalização.

Desde então, conforme este Digital Disfuncionalinformou, há uma crescente preocupação em resguardar o acesso às informações das plataformas apenas a pesquisadores credenciados. É o que tenta propor a regulação europeia por meio do DSA (Digital Services Act), que franqueia transparência a um seleto grupo de acadêmicos.

Se o moribundo PL 2.630/2020, aquele das “fake news”, voltar à pauta prioritária, há chance de seguir o mesmo problemático caminho, segundo pessoas com conhecimento sobre a elaboração do texto em negociação.

Numa conversa nesta quinta-feira (14) com Bruno Fávero, diretor de inovação do Aos Fatos e o primeiro editor da equipe do Radar, ele lembrou que desde que as plataformas começaram a dificultar o acesso a dados, a equipe de tecnologia tem investido no desenvolvimento de raspadores que substituam as APIs. A missão é inglória.

“Redes sociais são cada vez mais numerosas, e a desproporção de recursos é insuperável — grandes empresas de tecnologia têm milhares de engenheiros trabalhando para inovar na arte de restringir o acesso a dados, enquanto o Aos Fatos tem um pequeno time de desenvolvedores que precisa constantemente buscar novos caminhos para contornar restrições”, diz Fávero.

A tendência é que ferramentas de social listening e congêneres devam tornar-se cada vez mais exclusivas e pouco confiáveis. Se as métricas com as quais medimos o fluxo de informações na internet não são mais úteis, torna-se importante desenvolver tantas outras. É o momento de contemplar o anoitecer das plataformas e entender o que dizem as estrelas.

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