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Desinformadores endossam importância da profissão ao reivindicar título de ‘jornalistas’

Por Gisele Lobato

19 de abril de 2024, 14h23

Aviso: este texto é uma análise e foi publicado originalmente na newsletter O Digital Disfuncional.


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#31 | 🎤 #somostodosjornalistas

No fim de março, um orador do X Spaces fez uma apaixonada defesa do jornalismo. Convidado para dar uma palestra sobre liberdade de expressão, o participante do fórum — um advogado — argumentava que a atividade exigia técnica e capacidade de trabalhar com dados, fazer apurações e verificações, e que o conhecimento dessas operações diferenciava o trabalho de “quem é formado em jornalismo” dos conteúdos produzidos por comunicadores leigos.

O diploma de jornalismo não é obrigatório para exercer a profissão desde 2009, por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). Mas o que surpreende na apresentação é menos seu conteúdo e mais a arena do debate: uma reunião entre extremistas de direita brasileiros e americanos. Desse encontro saíram peças que ajudaram a mostrar a ligação entre as denúncias de uma suposta onda de censura no Brasil, amplificadas por Elon Musk, e a campanha de Donald Trump. Entre os principais convidados da reunião estava o blogueiro foragido, ex-seminarista, seguidor de Olavo de Carvalho — e autointitulado jornalista — Allan dos Santos.

Jornalistas são alvos frequentes da direita radical no Brasil — a começar pelo próprio clã Bolsonaro, como mostram sucessivos levantamentos feitos pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). A disseminação de desinformação, para ser bem sucedida, exige um trabalho paralelo de minar a confiança nos dados reais, o que sobra para seus mensageiros.

“Em 2022, a ‘descredibilização da imprensa’ foi uma estratégia adotada por Bolsonaro e seus apoiadores, a fim de desqualificar a informação jornalística”, aponta a Abraji num balanço que também mostra que bastou mudar de presidente para o índice de ataques “genéricos e generalizados” a jornalistas — não dirigidos a um alvo específico — despencar 91,95%.

Allan dos Santos possui particular predileção por xingamentos de cunho sexual e misógino direcionados a jornalistas mulheres, sobretudo da Globo. Basta um passeio de VPN por suas redes sociais para perceber o tempo que o autointitulado jornalista gasta atacando jornalistas.

O paradoxo da extrema-direita é que, ao mesmo tempo em que ataca o jornalismo, ela se agarra a ele em busca de legitimação. É um fetiche similar ao dos aspirantes a golpistas que redigem minutas de decreto na tentativa de mandar a Constituição às favas.

Essa contradição não é exclusiva do fundador do extinto canal Terça Livre. A categoria dos jornalistas que odeiam jornalistas tem até uma entidade para representá-los: a OJB (Ordem dos Jornalistas do Brasil). A organização é hoje ocupada por conservadores pouco familiarizados com a profissão, como se constata ao verificar que sua presidente não lista nenhuma experiência no jornalismo em sua página no LinkedIn — apenas seus mais de 11 anos como gestora de um movimento político cristão.

No lugar da aba de notícias, a página da OJB possui um link para um site que não existe. Os editoriais estão curiosamente na seção “publicações e editais”, onde se esperaria encontrar normas, regulamentos e outros documentos ligados ao funcionamento da entidade. A maior parte desses textos sequer consta em qualquer índice, só estando acessíveis por caminhos pouco intuitivos do site — ou, mais provavelmente, por links distribuídos pelas redes sociais de extrema-direita.

Em um desses posicionamentos, a organização “manifesta-se publicamente em defesa dos colegas jornalistas que atuam em mídias sociais modernas, como blogs, redes sociais, sites e canais de vídeo na internet”, argumentando que eles são alvo de discriminação por parte dos veículos da grande imprensa tradicional. “Essa discriminação passa por chamar colegas jornalistas de ‘blogueiros’ ou ‘youtubers’, termos usados com conotação pejorativa, desqualificando colegas de profissão.”

Em outro, denuncia decisões judiciais que “atacam a liberdade de expressão” de páginas incluídas em inquéritos que investigam redes de desinformação. A construção do argumento é similar à do caso Twitter Files Brazil, que fez barulho após ser endossado por Elon Musk.

Autor da denúncia do Twitter Files Brazil, o ativista americano Michael Shellenberger também se considera jornalista. O mesmo vale para David Ágape, outro convidado da audiência pública da Comissão de Comunicação e Direito Digital do Senado do dia 11, que botou lenha na fogueira que Musk acendeu.

“Tenho interesse na área policial, mas também cubro cultura, ciência e política”, diz Ágape no seu currículo — no qual diz estar “aberto a novas oportunidades”, mas omite sua carreira como agente penitenciário do estado de São Paulo.

Em artigo publicado no site da Rede de Jornalistas Internacionais, Leandro Demori destrincha as falhas do dossiê do Twitter Files Brazil. “Do ponto de vista jornalístico, é um caso para entrar para os manuais de jornalismo e para as aulas em universidades sobre o que não fazer na nobre arte de informar o público”, conclui.

Ao avaliar o caso Twitter Files como antiexemplo de jornalismo, porém, Demori desvia da pergunta essencial nesse debate, talvez por saber que, para ela, não existe resposta fácil: como definimos, afinal, o que é o jornalismo?

Em 2009, quando o STF discutiu a exigência de diploma para exercer a profissão de jornalista, um dos principais argumentos de quem se posicionou contra a obrigatoriedade — campo em que estavam as entidades patronais — era de que ela seria um obstáculo à liberdade de expressão. A origem da exigência, destacam, estava na ditadura brasileira e em seu intuito de controlar o discurso.

Quem defende o diploma costuma alegar que exercer o jornalismo de forma profissional, habitual e remunerada é diferente de meramente se expressar — do contrário, todo mundo que publica conteúdo em uma rede social seria automaticamente um jornalista. Nessa linha, exigir o diploma para ser jornalista profissional não impediria ninguém de usar as redes sociais para se posicionar no mundo.

A argumentação, porém, é insuficiente para lidar com casos de blogueiros que criaram impérios de desinformação e vivem da monetização das redes sociais — cujo algoritmo, aliás, sempre passou longe da discussão sobre a diferença entre “interesse público” e “interesse do público”, presente em qualquer curso de jornalismo.

Neste ano, a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) retomou seu lobby em prol do diploma de jornalismo. A aposta da entidade é na PEC do Diploma (206/2012), que aguarda há quase oito anos análise da Câmara após ser aprovada pelo Senado.

Diante do buraco em que nos metemos, porém, uma mera obrigatoriedade de diploma parece ter pouco a oferecer no enfrentamento da desinformação — basta lembrar que ter uma profissão regulamentada não impediu médicos de prescreverem tratamentos sem comprovação científica durante a pandemia.

Muitos jornalistas competentes não são formados na área, enquanto fábricas de diplomas colocam no mercado profissionais que não tiveram a oportunidade de desenvolver o pensamento crítico.

Falar de diploma não basta, mas discutir o jornalismo é urgente e envolve muitas camadas: das burocracias que definem quais veículos podem credenciar profissionais para fazer cobertura no Congresso à discussão sobre a remuneração da atividade pelas big techs.

Não parece razoável, porém, associar a defesa do diploma a um mero desejo corporativista de reserva de mercado — simplesmente porque já quase não há mercado para ser reservado.

As frequentes demissões coletivas no jornalismo, que se repetiram nesta semana, refletem um setor em crise, que não consegue encontrar um novo modelo de financiamento desde que a publicidade se pulverizou — remunerando hoje, democraticamente, de vídeos de gatinhos a convocações para ataques terroristas.

E os veículos jornalísticos que ainda restam já fazem experiências de substituir mão de obra por inteligência artificial, como Alexandre Aragão mostrou há algumas semanas na newsletter Plataforma. ”Acabou, mano”, repetia um colega de profissão mais experiente com quem trabalhei em um jornal que — como tantos — já fechou.

Em um contexto de “o último a sair apaga a luz”, a insistência de desinformadores em reivindicar o título de “jornalistas” soa como um estranho reconhecimento, um lembrete da importância desta profissão vindo justamente de quem mais queria que ela acabasse.

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