(Divulgação/Movimento Brasil Competitivo)

Campeões de emendas a projeto sobre IA no Senado visitaram big techs e governo dos EUA

Por Ethel Rudnitzki e Gisele Lobato

26 de junho de 2024, 11h43

Após dez meses de debates, a comissão do Senado criada para apresentar um projeto de regulação de inteligência artificial chega à reta final em meio a pressões de big techs para postergar a votação do texto.

Na semana passada, após o senador Eduardo Gomes (PL-TO) apresentar a terceira versão de seu relatório, as principais empresas interessadas no tema defenderam, por meio de associações de lobby, que o PL 2.338/2023 necessita de mais ajustes.

Nos últimos dias, membros da comissão de IA têm demonstrado simpatia pela visão das big techs, apresentando emendas alinhadas aos interesses delas. Um deles é o senador Laércio Oliveira (PP-SE), campeão de sugestões.

Em março, ele esteve em Washington com outros oito parlamentares para ouvir o que empresas, think tanks e o governo dos Estados Unidos pensam sobre IA. A passagem, paga com dinheiro público, custou R$ 46 mil.

Até a viagem, Oliveira havia sido pouco assíduo na comissão. Todas as suas 26 emendas foram apresentadas em junho, sendo que 20 chegaram ao relator Eduardo Gomes no dia 18 — data marcada para ocorrer a votação do relatório — e foram empilhadas sobre outras 75 sugestões enviadas por diferentes parlamentares, em um intervalo de sete dias.

A movimentação foi encarada pelo relator como uma estratégia para atrasar as discussões. “Eu não faço crítica à apresentação das emendas e à contribuição de última hora. Agora, é estranho que elas tenham vindo de quem participou de todas essas audiências públicas”, disse Eduardo Gomes.

“Não foi efeito manada, porque não se trata disso, se trata de uma coisa absolutamente pontual para causar prorrogações”, reclamou o senador.

As emendas apresentadas na reta final não serviram apenas para atrasar a votação da regulação. As propostas também tentam alinhar o relatório ao interesse das empresas de tecnologia, reduzindo a oneração e a fiscalização sobre desenvolvedores e aplicadores de IA.

Por causa da investida, a votação do projeto, que já havia sido adiada, foi prorrogada mais uma vez. Gomes manteve o prazo previsto de encerramento dos trabalhos da comissão em 17 de julho, apesar de novas emendas continuarem chegando.

Além de analisar as sugestões, a comissão tem nas próximas semanas a missão de realizar cinco audiências públicas, atendendo a um requerimento do vice-presidente, o senador Marcos Pontes (PL-SP), autor de 12 emendas apresentadas no dia em que a votação estava prevista.

Assim como Oliveira, o astronauta também participou da viagem de março para reuniões com empresas de tecnologia e o governo dos Estados Unidos.

EXCURSÃO

A missão para os Estados Unidos foi organizada pela Frente Parlamentar Mista Pelo Brasil Competitivo, da qual Pontes é vice-presidente, e pelo Movimento Brasil Competitivo. Ao lado dos dois senadores, participaram sete deputados federais:

  • Julio Lopes (PP-RJ)
  • Adriana Ventura (Novo-SP)
  • Lula da Fonte (PP-PE)
  • Vinicius Carvalho (Republicanos-SP)
  • Luísa Canziani (PSD-PR)
  • Daniel Freitas (PL-SC)
  • Lucas Ramos (PSB-PE)

A viagem, que ocorreu entre 18 e 22 de março, contou também com a presença de empresários do ramo da tecnologia e representantes das big techs no Brasil.

Uma executiva de relações governamentais do Google em Brasília pode ser vista em fotos da viagem, além de executivos brasileiros de outras multinacionais com interesses diretos na regulação da IA, como a Microsoft e a Amazon.

Reuniões com essas três empresas foram parte da agenda dos parlamentares brasileiros em Washington, nas quais as companhias procuraram mostrar como está o desenvolvimento e a aplicação da IA e as medidas que adotam para mitigar os riscos da tecnologia.

O último dia da programação foi encerrado com uma visita à Starlink, empresa de conexão à internet via satélites fundada por Elon Musk.

A comitiva também esteve com representantes da Casa Branca, do Departamento de Comércio e do Departamento de Estado, além de membros do Congresso, associações e universidades dos Estados Unidos. Em parte desses encontros, a discussão abordou a regulação da tecnologia que está em tramitação no Brasil.

Em novembro de 2022, meses antes de o Brasil retomar as discussões sobre a regulação das plataformas digitais, outro grupo de parlamentares brasileiros havia visitado sedes das big techs no Vale do Silício a convite do Departamento de Estado dos Estados Unidos, como mostrou o Intercept Brasil.

A Frente Parlamentar pelo Brasil Competitivo afirmou ao Aos Fatos que a viagem teve como objetivo “conhecer como diferentes países têm construído seus modelos regulatórios para inteligência artificial” e que a oportunidade permitiu “analisar as implicações da tecnologia no cotidiano do setor produtivo e do poder público americano”.

Quanto à presença de executivos de empresas de tecnologia na comitiva, a frente disse que “a intenção era amplificar a visão e conhecer as melhores práticas do tema, uma vez que os debates brasileiros estão muito centrados no modelo europeu de regulação” (leia a íntegra).

Já a camara-e.net, entidade que representa as big techs, negou que tivesse envolvimento com a organização da viagem e enviou comunicado reafirmando “sua disponibilidade e interesse em contribuir com os debates para a criação de políticas públicas e normas regulatórias relacionadas aos serviços digitais, tendo em vista o desenvolvimento integrado, competitivo e sustentável da economia brasileira, além da geração de renda e empregos” (leia a íntegra).

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Pé no freio. Participante das duas viagens, a deputada Adriana Ventura voltou da missão deste ano com discurso alinhado ao das empresas de tecnologia em relação à regulação das IAs.

“Para que estamos fazendo isso? Por que a gente precisa ter pressa? Países estão discutindo isso dois, três, quatro, cinco anos!”, argumentou a deputada em maio, em palestra sobre a aplicação da IA no setor de saúde. Na ocasião, Ventura alegou ter ouvido em Washington que a pressa poderia “matar a inovação”.

Também Pontes defendeu, em entrevista concedida na volta da viagem, que o Brasil precisava desacelerar a discussão do projeto.

“Não é bom ser o primeiro nessas horas, vamos observar como é que está acontecendo nos outros países. A gente já observou na Comunidade Europeia, agora vamos observar no Reino Unido, nos Estados Unidos… Eu fui lá, já tenho uma boa observagem [sic], já tenho um contato direto ali”, alegou o astronauta.

Senador Astronauta Marcos Pontes, que veste terno cinza escuro, camisa clara e gravata azul marinho com estampa espacial, sorri para a foto com os dois polegares levantados, fazendo joinha. Atrás, telas exibem logo do Google com referências à bandeira brasileira.
Joinha. Senador Astronauta Marcos Pontes (PL-SP) durante viagem de março aos Estados Unidos, na qual discutiu regulação da IA com big techs (Divulgação/FPpelobrasilcompetitivo)

O pedido de mais prazo de debates consta em uma nota conjunta assinada por associações de empresas como a Abes (Associação Brasileira de Empresas de Software), a Abradi (Associação Brasileira dos Agentes Digitais), a Endeavor e a FecomercioSP. No texto, divulgado na semana em que a regulação seria votada no Senado, as entidades consideraram que a discussão tinha “um senso de urgência injustificado”.

A regulamentação da IA foi estabelecida como prioridade para o Congresso em 2024. O Brasil também vem defendendo que a tecnologia seja abordada em novembro na cúpula do G20, da qual o país é anfitrião. O objetivo de trazer a discussão para o fórum é evitar que o tema seja debatido apenas por países do Norte Global.

“Tem gente que não tem interesse nenhum que seja regulamentado”, criticou Eduardo Gomes quando se queixou das manobras que impediram o projeto de ser votado no dia 18, considerando que a prorrogação pode afetar a imagem internacional do país.

“O mundo inteiro vai estar olhando para cá no G20, na COP, dizendo: ‘Chegou o momento e o Brasil não quer regular inteligência artificial’. Tranquilo, é da democracia, o relatório fica sem ser aprovado e o Brasil fica sem regulamentação. Agora, o que não pode é essa negociação ter mais espaço do que o mérito da análise de uma matéria importante como essa.”

Especialistas vêm apontando, porém, que os Estados Unidos têm atuado para tentar evitar que o debate sobre a regulação da IA avance em outros países.

“Precisamos que os Estados Unidos e seus parceiros continuem sendo os líderes inovadores e definidores de padrões do mundo”, defendeu o secretário de Estado, Antony Blinken, em discurso na Comissão Nacional de Segurança sobre Inteligência Artificial do país, em 2021.

Procurada, a deputada Adriana Ventura reiterou posicionamento de que “devemos ter cautela em qualquer iniciativa que tenha por objetivo regular a inteligência artificial neste momento”, argumentando que “se trata de uma tecnologia recente, sobre a qual pouco sabemos a respeito, e uma regulação inadequada pode jogar nosso país no atraso, comprometendo soluções criativas para nossos desafios de saúde, segurança e educação”.

Os demais parlamentares citados também foram contatados, mas não responderam até a publicação deste texto.

EMENDAS IDÊNTICAS

Após a viagem aos Estados Unidos, os senadores Marcos Pontes e Laércio Oliveira chegaram a apresentar emendas idênticas:

  • As emendas nº 62 e nº 93 pedem a alteração do primeiro artigo do texto para que a lei seja aplicada apenas para a “implementação, utilização, adoção e governança responsável de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil”, tirando da regulação o “desenvolvimento e concepção” da tecnologia — o que, segundo o Aos Fatos apurou, é uma reivindicação que empresas como a IBM e a Microsoft têm feito em reuniões internas de associações de lobby;
  • Já as emendas nº 67 e 99 sugerem a remoção do cargo de “encarregado” dentro da autoridade reguladora prevista no texto, que atuaria como mediador das demandas de pessoas e grupos afetados pela IA.

As justificativas das emendas também repetem argumentos usados pela camara-e.net, entidade que defende os interesses das big techs. Em comunicado enviado para parceiros no dia 12 de junho, a associação alegou que o PL 2.338/2023 trazia insegurança jurídica a empresas do setor e faria o Brasil ter “a regulação de IA mais restritiva do mundo”.

A associação omite que a maioria dos países ainda não possuem regulação para a tecnologia. Usada como comparação, a proposta da União Europeia oferece uma estrutura regulatória comum ao bloco, mas cada país precisará ainda definir detalhes sobre sua aplicação.

Ainda que distintas, outras alterações propostas pelos senadores afetam os mesmos trechos do relatório. As emendas nº 70, de Pontes, e nº 100, de Oliveira, pretendem limitar a possibilidade de regulação de sistemas de recomendação algorítmica, como os presentes em redes sociais.

A sugestão responde a uma corrente de ataques ao PL 2.338/2023 levantada logo após a apresentação do relatório. No dia 10 de junho, publicações no X passaram a associar enganosamente a proposta com uma tentativa de “censurar as redes sociais”.

“Entenda o PL 2.338/23 que vai ser discutido hoje no Senado e visa regulamentar os algoritmos, o que pode dar ao governo federal o controle da distribuição da informação”, dizia publicação da influenciadora investigada por disseminação de desinformação Bárbara Destefani.

Na publicação, ela se referia a artigo do projeto que designa uma autoridade governamental para regulamentar e fiscalizar tecnologias de inteligência artificial, entre elas sistemas de recomendação algorítmica.

O texto, contudo, não dá ao órgão o poder de controlar as informações presentes nas redes sociais, sendo sua função apenas solicitar auditorias para averiguar se os sistemas não têm vieses discriminatórios ou potenciais danos.

“As informações continuam sob segredo industrial, então não tem possibilidade de arbítrio algum do governo sobre esse tipo de atividade”, explica Yasmin Curzi, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV.

Para ela, o argumento faz parte de pressão feita por lobby e setores privados para que o projeto não seja aprovado. “Querem uma lei principiológica, como o [PL] 21/2020, sem grandes deveres aos atores privados”, afirmou, referindo-se a um projeto aprovado na Câmara em 2021 com o apoio de empresas de tecnologia.

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