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Casos de caminhões com doações parados nas estradas alimentaram desinformação e disputa política

Por Marco Faustino

9 de maio de 2024, 19h18

Desde que milhares de pessoas foram desalojadas de suas casas e ao menos uma centena morreu por causa da tragédia climática no Rio Grande do Sul, posts nas redes divulgaram relatos de que caminhões com doações às vítimas haviam sido parados nas estradas por autoridades estaduais e federais.

Peças desinformativas distorceram alguns desses casos reais para dar a entender que se tratava de uma orientação geral das autoridades.

Após esse tipo de informação falsa viralizar, o SBT levou ao ar uma reportagem em que identificou um comboio com doações sendo fiscalizado em um posto de pesagem da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) em Araranguá (SC). Apesar de um dos caminhões estar com carga excessiva, todos foram liberados.

Nas redes, a reportagem foi usada tanto para justificar a desinformação que vinha sendo veiculada sobre o caso quanto para questionar a veracidade do relato — que é verdadeiro e foi defendido tanto pelo SBT como pela repórter que fez as entrevistas.

Em meio à discussão, o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), aproveitou para atacar a ANTT — órgão federal subordinado ao governo Lula, do qual Mello é opositor. A gestão federal também agiu, e a AGU (Advocacia-Geral da União) entrou com uma ação para investigar a disseminação de desinformação relacionada ao Rio Grande do Sul, inclusive o caso dos caminhões.

A fim de explicar o caminho da desinformação — dos casos reais de veículos com doações parados até as informações falsas que circulam nas redes sociais —, o Aos Fatos descreve o que se sabe sobre os principais episódios.

  1. Os primeiros relatos
  2. O caminhão da Bread King em Torres
  3. A reportagem do SBT em Araranguá (SC)
  4. Um caminhão de disputa política
  5. Idas e vindas da ANTT — e o que diz o SBT

1. OS PRIMEIROS RELATOS

Na sexta-feira (3), já circulava no X (ex-Twitter) um print de uma conversa no WhatsApp relatando que caminhões haviam sido parados em Erechim (RS) — e que a liberação ocorreria somente mediante apresentação de nota fiscal e recolhimento do ICMS (imposto estadual sobre a circulação de mercadorias e serviços).

No dia seguinte (4), o usuário que compartilhou a história relatou que os caminhões foram liberados após os motoristas comprovarem que os produtos seriam doados a duas prefeituras gaúchas.

Esses primeiros relatos já motivaram posicionamentos de órgãos estaduais:

  • No domingo (5), a Secretaria da Fazenda de Santa Catarina afirmou que não havia qualquer ação de fiscalização para impedir o transporte de doações e que a orientação aos fiscais era para a liberação imediata dos veículos;
  • No mesmo dia, a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul reforçou que os veículos com doações tinham passagem livre garantida em postos fiscais.

2. O CAMINHÃO DA BREAD KING EM TORRES

Na segunda-feira (6), publicações nas redes começaram a compartilhar um vídeo que mostrava um caminhão da empresa Bread King para alegar que o veículo, que estaria carregado com doações às vítimas das enchentes, teria sido barrado por não apresentar nota fiscal dos produtos.

Em nota divulgada na última terça-feira (7), a empresa desmentiu o boato. Segundo ela, o caminhão mostrado na filmagem havia sido parado em um posto de fiscalização da Receita em Torres (RS) devido ao excesso de peso, mas foi liberado e seguiu viagem até o destino sem receber qualquer notificação ou multa.

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3. A REPORTAGEM DO SBT EM ARARANGUÁ (SC)

Ainda na terça-feira (7) uma reportagem do programa Tá no ar, do SBT (veja abaixo), mostrou que caminhões com donativos haviam sido barrados e multados enquanto seguiam para o Rio Grande do Sul. O caso teria ocorrido em um posto de pesagem da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) em Araranguá (SC).

Na reportagem, o superintendente da Defesa Civil de Florianópolis, Samuel Vidal, que escoltava o comboio, afirmou ter recebido uma multa de R$ 200 por excesso de carga, e que iria recorrer.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Vidal explicou que estava em comboio de quatro carretas e uma viatura da Defesa Civil catarinense que fazia a escolta, e descreveu a sequência dos eventos:

  • Segundo o servidor, para que nenhuma lei fosse infringida e para que fosse seguido o protocolo obrigatório, se encaminharam para a pesagem da ANTT em Araranguá. Um dos veículos, no entanto, estava acima do peso permitido;
  • Na sequência, o caminhão foi parado e solicitado que fosse apresentada a documentação. Segundo Vidal, a fiscal que estava no posto de pesagem disse que a carga em excesso de um dos caminhões precisaria ser remanejada para os demais, algo que, segundo o superintendente, não poderia ser feito no momento. A falta de solução para o problema lhe rendeu uma multa por excesso de peso;
  • Ao ser questionado pela fiscal sobre a nota da mercadoria transportada, Vidal afirma que explicou se tratar de doações, apresentou o documento correspondente, o que foi aceito pela fiscalização;
  • O caminhão não foi impedido de seguir viagem, mas foi notificado por evasão, já que deixou o posto de pesagem com peso acima do permitido pela legislação.

De acordo com o manual de fiscalização da ANTT, os limites máximos de carga variam de acordo com o veículo e em razão do número de eixos.

Segundo o documento, o agente da ANTT não fará registro de evasão aos veículos que transportem cargas especiais, como contêineres, que forem escoltados por agentes da Polícia Rodoviária Federal, cabendo ao órgão a prévia verificação quanto à regularidade para o trânsito do veículo.

4. UM CAMINHÃO DE DISPUTA POLÍTICA

O caso dos caminhões viralizou nas redes. Na manhã de quarta-feira (8), a repórter Márcia Dantas, responsável pela reportagem do SBT, afirmou, durante um programa da emissora, que não havia divulgado qualquer informação falsa e mencionou que estava sendo acusada de propagar “fake news”.

O imbróglio também ganhou tração no espectro político e passou a ser usado em ataques às gestões federal e estadual. Também na quarta-feira, o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), publicou um vídeo acompanhado do superintendente Samuel Vidal, da Defesa Civil de seu estado, para criticar a ANTT.

O governo federal também agiu após informações falsas sobre os caminhões viralizarem. A AGU anunciou na quarta-feira (8) uma ação contra o influenciador Pablo Marçal (PRTB).

O órgão do governo federal encaminhou uma notificação extrajudicial ao X com pedido para que, “em um prazo de no máximo 24 horas, a plataforma acrescente a postagens que afirmam que a União teria patrocinado a realização do show da cantora Madonna, no Rio de Janeiro, no lugar de destinar recursos para o enfrentamento da calamidade no Rio Grande do Sul, o esclarecimento de que não houve repasse de recursos federais para o evento cultural”.

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A PF investiga a propagação de notícias falsas relacionadas às medidas tomadas pelos governos federal, estadual e municipal. A apuração foi solicitada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública pela Secom da Presidência da República. No documento, enviado ao ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, o ministro da Secom, Paulo Pimenta, aponta influenciadores digitais, perfis de redes sociais e postagens na internet que, segundo ele, disseminaram informações incorretas.

Entre os exemplos mencionados no documento está um vídeo em que Marçal aparece ao lado de um homem, não identificado pelo Aos Fatos, que afirma que a Secretaria da Fazenda, supostamente do Rio Grande do Sul, estava retendo caminhões de doações sob a alegação da necessidade de apresentação de nota fiscal.

Na terça-feira (7), o influenciador já havia publicado um vídeo no X atacando a jornalista Natuza Nery, da GloboNews, que classificou o episódio como “fake news”. No mesmo vídeo, Marçal exibiu um trecho da reportagem do SBT como prova que caminhões estavam sendo retidos, e que tomaria as providências cabíveis por meio do Judiciário.

5. IDAS E VINDAS DA ANTT — E O QUE DIZ O SBT

Na noite de terça-feira (7), a ANTT emitiu uma nota dizendo que não estava retendo veículos de carga nas vias de acesso ao Rio Grande do Sul. Disse também que não estava sendo solicitada nota fiscal nem havendo aplicação de multas sobre veículos que transportam donativos.

A agência não citou o SBT, mas declarou que “vídeos que circulam na internet que afirmam que a ANTT reteve veículos de doação não condizem com a realidade dos fatos”.

Em nota publicada às 12h08 de quarta-feira (8), a ANTT anunciou uma portaria oficializando a flexibilização de medidas de fiscalização devido ao estado de calamidade no Rio Grande do Sul, reconhecido pelo decreto legislativo nº 236/2024 e pelo decreto nº 57.603, do governo estadual gaúcho.

Entre as medidas descritas pela portaria, que já estariam sendo adotadas pela agência, estavam a dispensa dos procedimentos de fiscalização nos postos de pesagem veicular e isenção de tarifas de pedágio em todas as rodovias federais concedidas. “A simples declaração verbal do motorista será suficiente para liberação do veículo pelo fiscal”, diz trecho do documento.

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Em vídeo não listado, publicado no canal da ANTT no YouTube às 15h18, o diretor-geral Rafael Vitale reconheceu que houve notificações isoladas e reafirmou que a agência já atuava para flexibilizar o fluxo de veículos que transportavam donativos.

“Houve casos isolados de autuação por excesso de peso na balança de Araranguá, que não se tornarão multas e serão devidamente anulados. É importante dizer que todos esses casos, foram seis, seguiram suas viagens sem retenção na balança, ao constatarmos que eram doações”, afirmou Vitale na gravação.

Dez minutos depois, às 15h28, o SBT divulgou nota segundo a qual a emissora “não produz e não divulga inverdades” e que a “equipe de reportagem constatou embaraços oficiais ao trânsito de caminhões com doações para o Rio Grande do Sul”.

O SBT disse ainda, sem citar o posicionamento da ANTT ou de Vitale, que “a informação foi confirmada na quarta-feira pela agência e o resultado, inclusive, é a suspensão das multas aplicadas, o que só foi possível diante da exposição do fato”.

Referências:

1. X (@AFaria_Fox 1, 2)
2. Secretaria da Fazenda de Santa Catarina
3. Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul
4. Instagram (@breadkinglojas)
5. O Estado de S. Paulo
6. ANTT (1, 2, 3, 4)
7. YouTube (SBT)
8. X (@jorginhomello)
9. AGU
10. Congresso em Foco (1, 2)
11. X (@pablomarcal)
12. X (@ANTT)
13. Câmara
14. Diário Oficial do Rio Grande do Sul
15. YouTube (Canal ANTT)
16. SBT News

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