🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Julho de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Gastos da Arábia Saudita para limpar reputação com competições esportivas geram engajamento

Por Alexandre Aragão

19 de julho de 2023, 18h45

Você nem precisa gostar de futebol para ter ouvido por aí que o meia Arrascaeta, do Flamengo, foi sondado pelo “mundo árabe” — ou que o zagueiro Gustavo Gómez, do Palmeiras, pode estar “de malas prontas” para lá.

A Plataforma de hoje é sobre a influência da Arábia Saudita nas redes.

EM 5 PONTOS:

  • Usar competições esportivas para limpar a reputação não é novidade — mas a ditadura saudita adotou escala jamais vista;
  • A estratégia faz parte de um plano maior, que vai além dos esportes, para modernizar a economia e atrair estrangeiros;
  • O fundo soberano do país tem participações em empresas como ByteDance (TikTok), Rappi e Uber, além de startups brasileiras;
  • Atletas, celebridades e influenciadores somam milhões de visualizações ao divulgarem o turismo local nas principais redes;
  • No Brasil, as joias de Bolsonaro foram o assunto relacionado à Arábia Saudita mais buscado no Google desde o início da série.

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🐪 A Arábia e os algoritmos

Mesmo que você não seja fã de mesas-redondas, pode ter ficado sabendo que o português Luís Castro — técnico do Botafogo até o mês passado — recebeu uma ligação do Cristiano Ronaldo e resolveu trocar o líder do Brasileirão pelo Al-Nassr, onde agora treina o compatriota.

Para quem torce, ignorar notícias do tipo tem beirado o impossível. A atual janela de transferências, período em que clubes podem contratar jogadores, promete transformar o Sauditão em um dos campeonatos nacionais com maior alcance global.

  • A busca de times da Arábia Saudita por jogadores que atuam no Brasil ocorria em menor escala. A diferença é que agora os quatro clubes mais populares da liga local passaram a ter participação do fundo soberano do país, o PIF (Fundo de Investimento Público, na sigla em inglês);
  • Desde 2016, o PIF desembolsou bilhões de dólares a fim de atrair eventos esportivos à Arábia Saudita, que é uma monarquia ditatorial, como parte de um plano para modernizar o país até 2030;
  • Além do futebol, o reino possui contrato com a Fórmula 1, chacoalhou o universo do golfe, negocia com a NBA — liga de basquete dos Estados Unidos — e promoveu competições que vão do xadrez ao turfe.

Em dezembro de 2018, dois meses após o jornalista Jamal Khashoggi ter sido assassinado dentro do consulado saudita em Istambul (Turquia), aconteceu a primeira corrida de carros da história da Arábia Saudita. Junto com a etapa da Formula E na capital Riad, houve ainda shows de Black Eyed Peas, David Guetta, Enrique Iglesias e One Republic.

Tanto o assassinato do colunista do Washington Post como o evento de entretenimento não teriam ocorrido sem a anuência do príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, de 37 anos. Ele é o governante de fato desde 2017.

  • Com o controle das maiores reservas de petróleo da Terra e de uma população jovem (62% das pessoas têm 30 anos ou menos), bin Salman despende centenas de bilhões não só para lustrar a reputação do país, mas também para promover uma transição econômica;
  • O Vision 2030 é “um plano ambicioso, porém viável, que expressa nossas metas e expectativas de longo prazo e reflete os pontos fortes e as capacidades de nosso país”, segundo mensagem assinada pelo príncipe herdeiro e publicada pelo governo;
  • Por exemplo: a escolha da Formula E, de carros elétricos, se conecta ao incentivo à transição de matriz energética — a meta é que metade da energia do país seja de fontes renováveis até 2030.

Empresários e investidores estrangeiros associados ao ditador acreditam que, caso os planos dele se concretizem no futuro, o assassinato de Khashoggi será encarado em retrospectiva como um erro menor na trajetória de um jovem líder. É gente como Carla DiBello, que levou ao príncipe herdeiro a ideia de comprar o Newcastle, da primeira divisão do futebol inglês, e ganhou seguidores como ex-produtora do reality show “Keeping Up With the Kardashians” — além de ser amiga pessoal de Kim Kardashian.

As informações do parágrafo acima estão no excelente livro “Blood and oil: Mohammed bin Salman’s ruthless quest for global power” (“Sangue e petróleo: a busca implacável de Mohammed bin Salman por poder global”, sem edição brasileira), dos jornalistas Bradley Hope e Justin Scheck.

Como se vê, o dinheiro do reino jorra em várias direções. Um documentário recente conta como uma pintura que retrata Jesus Cristo ficou esquecida por séculos e acabou em um sebo nos Estados Unidos, onde foi comprada por pouco mais de US$ 1.000. Após passar por restauração, o quadro — apesar da origem pra lá de suspeita — foi leiloado pela Christie’s como um original Leonardo Da Vinci e chegou a incríveis US$ 400 milhões. O comprador você já sabe quem é.


Fado a dois. Castro e Ronaldo sorriem um para o outro; ao centro, o croata Brozovic, contratado após ser vice europeu com a Inter de Milão em 2022 (Reprodução/Instagram)

O fundo soberano também alocou US$ 45 bilhões no Vision Fund, administrado pelo banco de investimento japonês SoftBank, com participações em empresas como ByteDance, dona do TikTok; DiDi, controladora da 99; Slack, Rappi e Uber. Uma das maiores apostas, no WeWork, gerou prejuízos e freou planos para expandir os investimentos, em um segundo fundo do SoftBank.

  • Apesar de ter queridinhas do Vale do Silício, o portfólio é composto na maioria por companhias que não necessariamente têm o consumidor final como cliente;
  • A fabricante de chips Nvidia, que recebeu investimento do Vision Fund, viu seu valor de mercado triplicar apenas neste ano graças aos avanços de inteligência artificial, já que a empresa produz componentes utilizados em supercomputadores;
  • Outra companhia de hardware, a ARM, tem seus processadores instalados em boa parte dos smartphones produzidos atualmente, de marcas como Apple e Samsung, e avança no mercado de desktop;
  • Há três startups de origem brasileira: Creditas, Gympass e Loggi.

O posicionamento como investidor relevante no mundo da inovação se liga à estratégia geral de buscar limpar a reputação da Arábia Saudita e atrair estrangeiros. Conteúdos sobre o país publicados em plataformas digitais por influenciadores de países ocidentais atingem centenas de milhões de usuários.

“O reino já havia passado por mudanças profundas no cotidiano. Partes de Riad e outras grandes cidades se pareciam cada vez mais com Dubai — homens misturados a mulheres com as cabeças descobertas, em restaurantes e shoppings. Turistas começaram a chegar, influenciados por celebridades de Instagram pagas pelo governo saudita para visitarem e espalharem a palavra”, escrevem Hope e Scheck no livro.

Lionel Messi não fez como Cristiano Ronaldo: em vez de jogar na Arábia Saudita, trocou Paris por Miami, um centro menos relevante para o futebol internacional. Mesmo assim, o argentino recebeu dinheiro do príncipe bin Salman para promover o turismo no país. Em maio, postou uma publi paga pelo governo e teve 7,3 milhões de curtidas.

“Alguns anos atrás seria impossível estar assim de camiseta, mostrando os braços (sendo mulher) na Arábia Saudita”, escreveu a influenciadora Nataly Castro (@viajesemlimites), com 75 mil seguidores no Instagram, em uma publicação do mês passado na qual usa a hashtag oficial para promover o turismo local. “Uma experiência rápida, mas única.”

Na busca do Google, a primeira página de resultados e a aba de notícias trazem principalmente textos sobre futebol, como os citados no início desta newsletter. O usuário que quiser se informar sobre violações a direitos humanos terá que procurar um pouquinho mais.


‘Parceria paga.’ Messi recebeu para promover turismo na Arábia Saudita (Reprodução/Instagram)

Apesar dos bilhões gastos para melhorar a imagem do país, o príncipe não contava com a astúcia de Jair Bolsonaro e seus aspones. Foi esse o elenco que protagonizou a história relacionada à Arábia Saudita que gerou mais buscas por brasileiros desde 2004, início da série do Google Trends.

  • As intensas movimentações do mercado da bola não foram suficientes para superar as dúvidas dos brasileiros sobre as joias retidas pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos;
  • Os objetos foram avaliadas pela Polícia Federal em cerca de R$ 5 milhões — o equivalente a uma gota em um oceano de petróleo;
  • Telegrama do Itamaraty revelado pelo G1 mostrou que a comitiva brasileira abordou temas ligados à Petrobras no encontro;
  • Uma das hipóteses sob apuração é se havia, por parte dos sauditas, expectativa de contrapartida em troca das joias.

O ex-chefe de Estado brasileiro não é o único que recebeu agrados de alto valor monetário da monarquia ditatorial. Dois resorts que levam o sobrenome de Donald Trump, que tentará voltar à Casa Branca na eleição do ano que vem, abrigaram torneios de golfe pagos pela Arábia Saudita no ano passado.

No mês passado, em visita à França — país onde o príncipe herdeiro possui um palácio que custou US$ 300 milhões —, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva incluiu em sua agenda um “jantar em homenagem ao presidente da República e senhora Janja Lula da Silva”, oferecido por Mohammed bin Salman. Após reações negativas nas redes, acabou cancelando o encontro. É raro, mas nem sempre o herdeiro consegue o que quer.


O príncipe e o plebeu. Bin Salman e Bolsonaro, na Arábia Saudita, em 2019 (José Dias/PR)

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