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🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Novembro de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Conflito em Israel eleva busca na internet por termos ligados ao apocalipse

Por Gisele Lobato e João Barbosa

24 de novembro de 2023, 13h01

Expressões relacionadas ao apocalipse bíblico tiveram um pico de buscas no Google na semana de 8 a 14 de outubro, dias seguintes ao ataque do Hamas a Israel. A procura por termos como “Jesus está voltando” e “anticristo”, dentre outras referências ao fim dos tempos, alcançou níveis similares a março de 2020, no início da pandemia da Covid-19, conforme dados do Google Trends.

A interpretação da guerra no Oriente Médio como um sinal de que “o fim está próximo” é um dos posicionamentos presentes nas discussões sobre o conflito entre usuários evangélicos do Instagram, segundo outra análise feita pelo Aos Fatos. O levantamento mostra que, nessa rede, o apoio a Israel é majoritário nos comentários deixados em perfis de influenciadores evangélicos, mas ele divide espaço com outros discursos:

  • O versículo “Orai pela paz de Jerusalém!”, parte do Salmo 122, foi um dos mais lembrados nos posts e comentários nas redes evangélicas;
  • Em alguns casos, a mensagem de apoio aos judeus ganhou tom belicista, com clamores para que “Israel esmague seus inimigos”;
  • Outro discurso recorrente interpreta a guerra como um sinal da volta próxima de Jesus e do fim dos tempos, com base em profecias bíblicas;
  • Dentro do grupo que vê sinais do apocalipse, alguns comentários afirmam que “orar pela paz é orar contra a palavra de Deus” ou lembram que, na Bíblia, “a chegada da paz corresponde à chegada do anticristo”;
  • Uma corrente, que inclui os progressistas, busca balancear a oração por Israel com pedidos para Deus proteger “todos os inocentes”, em referência à população civil palestina;
  • Outro grupo inclui até os guerrilheiros do Hamas em suas orações, dentro da lógica de que “devemos amar até nossos inimigos” e clamar por sua conversão;
  • Parte da comunidade entende que a Israel de hoje não equivale à da Bíblia ou acreditam que o Novo Testamento criou uma nova aliança, que substitui a ideia de que os judeus são o “povo escolhido”;
  • Parcela minoritária compartilha esse pensamento, mas sob uma perspectiva conservadora e antissemita: acreditam que os judeus estão sendo punidos pela guerra, por “não aceitarem Jesus como o Salvador” ou por permitirem “pecados” em Israel, como o aborto legalizado.

No levantamento, o Aos Fatos coletou os comentários deixados em posts sobre o conflito nos perfis dos 44 influenciadores considerados mais relevantes pela pesquisa Radar Evangélico, realizada pela consultoria especializada em religião e conservadorismo de costumes Nosotros, do antropólogo Juliano Spyer. Para identificar os discursos mais frequentes, foram analisadas cerca de 40 mil mensagens.

“O apoio a Israel por parte dos evangélicos é o discurso mais robusto, só que o limite desse apoio vai depender do grupo”, afirma Alexandre Gonçalves, teólogo e pastor da Igreja de Deus no Brasil.

Criador do Movimento Cristãos Trabalhistas, Gonçalves afirma que uma parte dos evangélicos acredita que Israel tem o direito de se defender até mesmo na forma de ataque, mas as imagens de atrocidades envolvendo crianças palestinas “têm feito pessoas bem intencionadas dessa bolha refletirem que o apoio não pode ser incondicional”.

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DA PERSEGUIÇÃO À ALIANÇA

A maioria dos influenciadores evangélicos analisados pelo Aos Fatos se posicionou sobre o tema logo após o ataque de 7 de outubro do Hamas. O momento das postagens — predominantemente anteriores à investida israelense contra a Faixa de Gaza — é um dos fatores que ajuda a explicar a solidariedade quase unânime do público evangélico a Israel, mas não o único. Ela reflete as mudanças no protestantismo ao longo dos séculos, que passou do antissemitismo de Martinho Lutero às fotos de celebridades gospel em viagens à Terra Santa. No Brasil, expressa ainda a aproximação entre grupos evangélicos e parte do bolsonarismo. O Aos Fatos ouviu acadêmicos e teólogos para compreender o fenômeno.

Um dos pais da Reforma Protestante — movimento que no século XVI abriu espaço para novas correntes cristãs não subordinadas à Igreja Católica —, Martinho Lutero também é autor de Sobre os Judeus e Suas Mentiras. A obra refletia um antissemitismo típico da Idade Média, que também causou a perseguição dos judeus pela Igreja Católica.

O pensamento do religioso foi utilizado como propaganda nazista pelo regime de Adolf Hitler e tinha entre suas bases a ideia de que os judeus eram culpados pela morte de Cristo. O antissemitismo não é mais prevalecente no meio evangélico, mas a discriminação contra judeus fez um pastor ser condenado a 18 anos de prisão em 2022.

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Lyndon de Araújo Santos, pastor e professor de história na UFMA e na UFRRJ, afirma que alguns líderes evangélicos ainda repetem que os judeus “mataram Jesus”, mas muitas vezes fazem isso “de forma paradoxal”, associando essa ideia à de que esse é “o povo escolhido, para quem Deus ainda tem promessas”.

A concepção dos judeus como o “povo escolhido” está no Antigo Testamento e vem do próprio judaísmo, que desenvolveu a crença de que Deus fez uma série de alianças com o povo de Israel, através de representantes como Noé, Abraão, Isaac, Jacó e Moisés.

O Cristianismo clássico se apropriou da noção de pacto do judaísmo, mas “interpretando que Jesus Cristo, na verdade, é a única, maior e definitiva aliança” e substituiu as anteriores, afirma Santos. Segundo o historiador, é pressuposto básico da tradição reformada evangélica a ideia de que a vinda de Jesus transferiu a aliança com Israel antigo para uma aliança com a Igreja — ou seja, com os seguidores de Cristo.

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Na segunda metade do século XIX, porém, ganha força nos Estados Unidos o dispensacionalismo — filosofia que concorda que Deus construiu uma aliança com a Igreja, mas considera que esse pacto não anulou as promessas feitas aos judeus no Antigo Testamento.

Simpático ao dispensacionalismo, o pastor batista Alexandre Dutra, diretor do Ministério Amigos de Sião, diz que essa corrente considera todos os textos da Bíblia em sua análise e aplica um método “literal, histórico e gramatical em todas as doutrinas”.

Outros religiosos, como Gonçalves, criticam o dispensacionalismo por entenderem que ele faz uma interpretação literal do Antigo Testamento e ignora “tudo o que Jesus fala no Novo Testamento”. “Na Nova Aliança que Cristo coloca, ele diz bem claro que não há mais distinção entre gentios e judeus”, defende.

O dispensacionalismo foi introduzido no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, por missionários norte-americanos. Foi por este caminho que os Amigos de Sião chegaram ao país. Segundo Dutra, a entidade tem como missão transmitir “as nossas raízes dentro do contexto judaico para as igrejas evangélicas” e lutar contra o antissemitismo.

MISTIFICAÇÃO DA TERRA SANTA

Apesar de sua defesa da aliança dos evangélicos com Israel, o pastor batista afirma que seu ministério também combate “o abuso disso”, criticando o tratamento que algumas correntes neopentecostais têm dado ao assunto.

Para Dutra, alguns grupos criaram “uma espécie de misticismo da Terra Santa” e passaram a adotar símbolos judaicos como amuletos, o que seria uma regressão, pois a Bíblia “condena a idolatria de coisas, de pessoas, de lugares”. “O brincar de ser judeu nunca é positivo para um testemunho cristão”, complementa.

“Os neopentecostais transformaram Israel e os símbolos judeus em uma questão mágica, mágico-religiosa, sacerdotal”, diz Santos, explicando que o uso da simbologia judaica nos cultos já tinha sido superada pelo Cristianismo no primeiro século após a morte de Jesus, mas foi resgatado.

Para o pastor, o neopentecostalismo mistura várias influências tradicionais com tendências recentes do conservadorismo norte-americano, como a Teologia do Domínio.

“A Teologia do Domínio diz que a Igreja, em vez de servir a sociedade como Jesus nos Evangelhos fala, pega o modelo do Velho Testamento, em que Israel era instado a dominar as nações, e entende que a Igreja tem que fazer esse domínio político, cultural e em todas as áreas ”, explica Gonçalves.

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Essas ideias começaram a circular no Brasil sobretudo nos anos 1990. Mas, segundo Gonçalves, foi com a popularização dos cursos de Olavo de Carvalho, já neste milênio, que a adesão à Teoria do Domínio explodiu. O influenciador de extrema-direita pregava a necessidade de guerra contra o que chamava de “marxismo cultural”, o que dialogava com os cursos que os pastores faziam em instituições norte-americanas.

Ao colocar muitas denominações evangélicas em conflito aberto contra correntes progressistas, a lógica do olavismo favoreceu o apoio a Israel, afirma o pastor, já que a causa palestina é associada às esquerdas por esses grupos.

Gonçalves explica, no entanto, que as razões políticas para o apoio a Israel só são ditas “à meia boca”. “O argumento político não tem autoridade no nosso meio, só o argumento bíblico.” Nesse contexto, o teólogo critica parte das lideranças neopentecostais por fazer malabarismo com a Bíblia para dar sustentação a ideologias e posicionamentos alheios à religião, o que inclui também a defesa das armas de fogo.

Para o religioso, o processo de tirar do contexto trechos do Antigo Testamento é facilitado pelas dificuldades de acesso à educação no país. Em virtude de suas dificuldades de leitura e interpretação dos textos sagrados, muitos fiéis não conseguem questionar suas lideranças.

ENGAJANDO O APOCALIPSE

Com sua leitura literal do Antigo Testamento, o dispensacionalismo destacou as preocupações com o apocalipse e popularizou entre fiéis evangélicos brasileiros expressões como “Grande Tribulação” (período de aflição que antecede à volta de Jesus) e “arrebatamento” (o resgate dos fiéis por Cristo). Foram termos como esses que ganharam impulso nas buscas no Google com o ataque do Hamas a Israel em outubro.

Segundo o pastor Gonçalves, antes mesmo da criação do Estado judeu, alguns cristãos já acreditavam que a restauração de Israel seria um indicativo do fim do mundo, já que ela é mencionada no Antigo Testamento como etapa desse processo. Quando o território foi instituído, em 1948, parte desses religiosos transferiu a leitura que faziam do Israel bíblico para o novo país.

Desde então, diz o pastor, “muita gente olha para Israel como um relógio profético do mundo”, de onde viriam as “pistas” do apocalipse. Esses grupos passaram a interpretar a Bíblia tentando encontrar os sinais do cumprimento de suas profecias no presente, o que deu aos conflitos no Oriente Médio um novo significado.

Segundo o historiador Lyndon Santos, a Guerra Fria ajudou a disseminar a crença de que o apocalipse está próximo nos Estados Unidos, de onde foi importada também para o Brasil. “Esse clima de Terceira Guerra Mundial, guerra nuclear, bomba atômica, criou um ambiente propício para a disseminação de uma interpretação literalista da Bíblia que via um fim do mundo iminente”.

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O cruzamento da crença no fim do mundo com interpretações mais radicais vindas da teologia norte-americana tem feito com que a busca por sinais da volta de Jesus, para alguns neopentecostais, ganhe contornos belicistas.

“Há gente que acredita que uma das profecias da Bíblia seria a reconstrução do Templo de Salomão no local onde hoje há uma mesquita e, por isso, dizem que é preciso destruir a mesquita” para que a profecia se cumpra, explica Gonçalves.

Vinícius do Valle, diretor do Observatório Evangélico e pesquisador da relação entre religiões evangélicas e a política, afirma que, no passado, algumas vertentes cristãs já viam terremotos, eclipses e outros desastres naturais pela lente do fim dos tempos.

“O que é novo é a questão da crise climática, da pandemia e do que eles chamam de ‘desordem’ no mundo’, diz o pesquisador, afirmando que alguns líderes veem esses indícios também nas questões identitárias, como os movimentos LGBTQI+ e feminista.

Para Valle, além das mudanças na sociedade, outra razão para o crescimento desse discurso nas redes sociais seria a própria dinâmica do mundo virtual, em que o “engajamento traz receita”. E o fim do mundo, diz, tem potencial para engajar.

Uma checagem do Aos Fatos mostrou, por exemplo, a circulação nas redes de posts que mentem ao dizer que o rio Nilo teria ficado vermelho — realizando, assim, uma profecia bíblica.

“Quem faz esse conteúdo está ganhando em cima do clique. Esse tema junta a questão ideológica, teológica, a dinâmica de funcionamento das redes e o plano econômico. Isso atrai muito picareta”, resume Valle.

Referências:

1. Google Trends (1, 2, 3, 4)
2. Nosotros
3. Aos Fatos (1, 2)
4. Unisinos
5. CNN Brasil
6. Folha de S.Paulo

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