Marcelo Camargo/Agência Brasil

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Julho de 2019. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

O que é fato na discussão sobre a doação de sangue por gays

Por Bruno Fávero

31 de julho de 2019, 10h00

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte decidiu na semana passada que o estado não pode impedir homens homossexuais com vida sexual ativa de doarem sangue. O caso reabre um debate, que acontece em todo mundo, sobre se as restrições para doação de sangue por gays são uma precaução necessária ou uma forma de discriminação.

De um lado, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) argumenta que a restrição é técnica e apenas consequência da maior prevalência do HIV entre homens gays. Do outro, quem pede por mudanças sustenta que as regras revelam preconceito ao classificar homens gays com comportamento sexual seguro – que são monógamos e sempre usam preservativo, por exemplo – como de alto risco.

O processo que originou a decisão no RN foi movido por um homem gay que, em 2010, não pôde doar sangue em Natal. A corte julgou inconstitucional a regra da Anvisa que exige abstinência de 12 meses para esses grupos e definiu uma multa de R$ 5 mil para cada negativa.

O episódio também lembra que está parada no STF desde 2017 uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que questiona as atuais regras para doação de sangue por discriminarem homens gays. A Adin começou a ser votada naquele ano e já tinha quatro votos a favor da inconstitucionalidade, quando o ministro Gilmar Mendes pediu vistas no processo.

Entenda a questão da doação de sangue por homossexuais em quatro pontos:

1. Restrições no Brasil começaram na década de 1990

Homens que fizeram sexo com outro homem nos últimos 12 meses estão inaptos a doar sangue, segundo a mais recente portaria sobre o assunto, publicada pelo Ministério da Saúde em 2016, ainda no governo Dilma Rousseff (PT).

É o mesmo tempo de quarentena de quem fez sexo "em troca de dinheiro ou drogas", de quem teve ao menos uma parceiro ocasional, sofreu estupro, teve relação sexual com portador de uma DST, foi preso por mais de 72 horas, fez tatuagem ou "teve acidente com material biológico".

O governo costuma alegar que a restrição não é para uma orientação sexual, mas para um comportamento. Ou seja, não importa se o doador se identifica como gay, hétero ou bissexual, mas se ele é um homem que teve relações com outro homem. Mulheres que fazem sexo com mulheres, por exemplo, não têm nenhuma restrição específica.

As regras já foram ainda mais rígidas e chegaram a excluir permanentemente homens gays com vida sexual ativa. A primeira vez que uma restrição do tipo apareceu oficialmente no Brasil foi em 1993, quando uma portaria do Ministério da Saúde definiu que deviam "ser excluídos definitivamente indivíduos [...] com história de pertencer ou ter pertencido a grupos de risco para SIDA/AIDS, e/ou que seja ou tenha sido parceiro sexual de indivíduos que se incluam naquele grupo."

A proibição foi relaxada apenas em 2002, quando uma resolução da Anvisa adotou a regra atual e passou a inabilitar por 12 meses "homens que tiveram relações sexuais com outros homens e as parceiras sexuais destes".

2. Não há consenso claro no mundo, e as regras vêm mudando

Não há um padrão em como outros países lidam com a questão. Em geral, há três grupos distintos.

No primeiro, homens que fazem sexo com homens não podem doar sangue permanentemente. É o caso de Alemanha, Áustria, Croácia, Dinamarca, China, entre outros. Segundo um estudo, até 2010, 20 de 25 países europeus analisados optavam por essa abordagem.

Um segundo grupo, no qual está o Brasil, impõe um período mínimo de abstinência sexual (que pode variar de três meses a cinco anos) para que homens que fazem sexo com homens possam doar sangue. É o caso também de Estados Unidos, Canadá, Finlândia, Bélgica, Holanda, Irlanda, Israel, República Tcheca, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia.

Por fim, há países que usam critérios baseados no risco do comportamento sexual individual, sem criar distinções por causa do gênero do doador e seu parceiro. Argentina, Chile, Peru, Uruguai, Portugal, Espanha, Itália, entre outros, adotam essa abordagem.

Vale notar que esses protocolos estão sempre sendo rediscutidos. Os EUA passaram a usar a abstinência de 12 meses apenas em 2015. Até então, homens gays eram banidos permanentemente das doações. A Itália também adotava uma proibição permanente até 2001, quando passou a adotar a avaliação de riscos individual.

Já o Reino Unido excluía homens gays sexualmente ativos permanentemente até 2011, quando passou a adotar a abstinência de 12 meses. Em 2017, após recomendação do órgão competente, esse período caiu para três meses.

Neste ano, o Canadá também reduziu a janela de abstinência de 12 para três meses.

3. Testes dos bancos de sangue estão mais precisos e rápidos

Desde que as regras para doação de sangue foram criadas, os exames usados por hemocentros para analisar o sangue doado evoluíram. Em 2013, todo hemocentro, público ou privado, passou a ser obrigado a realizar um teste chamado NAT (teste de ácido nucleico) em todas as bolsas coletadas. A introdução desse exame reduz a chamada janela imunológica do HIV, período logo após a infecção em que o vírus ainda é indetectável, de 22 para cerca 12 dias.

A técnica também é usada para a detecção de outros vírus. Na França, por exemplo, um estudo mostrou que a adoção dessa tecnologia reduziu o risco de contaminação por hepatite C de 0,64 para 0,1 por milhão de doações.

Em parte graças ao NAT, o Reino Unido conseguiu reduzir o período de abstinência exigido de grupos de risco de 12 para três meses. No relatório em que recomendaram a mudança, cientistas do Reino Unido calcularam que o risco de sangue infectado com HIV não ser detectado pelos testes seria de entre 0,18 e 0,67 por milhão de doações em um ano, patamar similar ao risco sob a regra antiga.

Autores de estudo feito na Austrália também concluíram que exigir a abstinência de 12 meses "extrapola o que é necessário para manter a segurança transfusional" e recomendaram a adoção de uma janela menor, de três meses.

4. O HIV de fato é mais comum entre homens gays, mas faltam estudos sobre o impacto disso na doação de sangue

Um dos principais argumentos a favor do tratamento diferenciado de homens que fazem sexo com homens é que a taxa de infecção por HIV é significativamente maior nessa parcela da população.

Segundo um estudo da OMS (Organização Mundial da Saúde), esse grupo tem 19,3 vezes mais chances de ser infectado com o vírus do que o resto da população. No Brasil, um estudo feito em 12 cidades apontou que cerca de 18% dos homens que fazem sexo com homens estão infectados com o HIV. A prevalência na população geral de todo o país, segundo o Ministério da Saúde, é de 0,4%.

O que não está claro é como esses dados impactam o risco de doação de sangue.

Defensores de uma mudança nas regras argumentam que a triagem deveria levar em conta não a prevalência da doença em todo o grupo, mas uma avaliação do risco do comportamento de cada indivíduo, já que um homem gay pode ter um comportamento sexual menos arriscado do que outros grupos.

O caso da Itália reforça este argumento: a adoção da avaliação de risco individual em 2001 não levou a aumentos nas taxas de doadores infectados com HIV, segundo um estudo de 2013.

Muitos acadêmicos e órgãos regulatórios, porém, defendem que sejam feitos mais estudos antes de mudanças. Um órgão técnico do governo do Reino Unido concluiu em relatório que ainda não há evidências científicas suficientes para recomendar a adoção uma triagem completamente neutra em termos de gênero.

Em junho, um artigo assinado por pesquisadores brasileiros e americanos que analisa o histórico de mudanças em regras de doação também salientou a necessidade de mais pesquisas na área, que "devem focar na adequação do tempo de abstinência versus o impacto na segurança e estabilidade do suprimento de sangue no Brasil".

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