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🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Abril de 2018. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

O que Ciro disse de errado sobre recursos na Justiça e criminalidade

Por Bárbara Libório

28 de abril de 2018, 01h20

O jornal Diário Catarinense publicou na última segunda-feira (23) uma entrevista com o pré-candidato à presidência pelo PDT, Ciro Gomes. Aos Fatos checou suas declarações e verificou que ele usou informações imprecisas ao falar da organização do Poder Judiciário brasileiro e do histórico da carga tributária no país, além de usar dados insustentáveis para falar da capacidade de investigação de homicídios no Brasil.

Veja, abaixo, o que apuramos.


IMPRECISO

Está errado no Brasil dar quatro graus de jurisdição ao julgamento de um crime comum, sem repercussão constitucional nenhuma que justifique isso.

Na teoria, não é correto dizer que o Brasil tem quatro instâncias judiciais. Na prática, porém, há quem afirme que o STF tem atuado como órgão revisor e, portanto, funciona como quarta instância.

Em regra, existem duas instâncias ordinárias. A primeira instância corresponde ao órgão que analisará e julgará inicialmente a ação apresentada à Justiça. As decisões por ela proferidas podem ser submetidas à apreciação de uma instância superior, a segunda instância, que é composta por órgãos colegiados que podem reexaminar a matéria. A existências dessas duas instância é a chamada garantia constitucional do duplo grau de jurisdição.

Os processos podem, ainda, seguir para o STJ (Supremo Tribunal de Justiça) e até para o STF (Supremo Tribunal Federal), mas eles só dão palavra final em disputas judiciais no país em questões jurídico-constitucionais. O próprio CNJ (Conselho Nacional de Justiça), órgão de controle do Judiciário brasileiro, afirma em seu site que os tribunais superiores são considerados a terceira instância, “apesar de esse grau de hierarquia não existir formalmente no Poder Judiciário”.

“O STJ e o STF não são instâncias ordinárias, eles são o que chamamos de instâncias de superposição, o papel central deles não é reanalisar o caso por si mesmo, mas proteger a ordem jurídica — no caso do STJ, proteger a legislação federal, e no caso do STF, a constituição”, explica o constitucionalista Eduardo Bastos Furtado de Mendonça, ex-assessor do ministro do STF Luís Roberto Barroso.

Mendonça explica que em diversos países há tribunais superiores que não existem para rever cada caso individualmente, mas para serem órgãos que defendem teses jurídicas que serão aplicadas por outros órgãos judiciais. O que acontece, segundo ele, é que na prática, eles acabam sendo usados como uma nova instância judicial.

“Nós temos, tipicamente, em uma situação convencional, dois graus de jurisdição ordinária, o duplo grau — um juiz examina e outro revê — e há a possibilidade de acesso aos tribunais superiores quando há o argumento de violação à ordem jurídica. Esse acesso deveria ser excepcional, mas no Brasil ele é mais frequente. Nos EUA, por exemplo, você tem dois graus. Eles têm a Suprema Corte, e você pode levar casos criminais até ela, mas isso significa que há três graus? Não. Lá o acesso à Suprema Corte é excepcional. Nenhum réu conta com essa possibilidade.”

O frequente acesso aos tribunais superiores no Brasil, principalmente ao STF, é o que faz com que diversas autoridades digam que eles funcionem como a quarta instância do Poder Judiciário. Em 2010, o então presidente do STF, Cezar Peluso, já afirmava isso. Neste ano, a afirmação foi repetida pelo ministro Edson Fachin, que afirmou que o Supremo tem sido utilizado como revisor das instâncias anteriores.

Em 2014, o Ministério da Justiça e a FGV (Fundação Getúlio Vargas) lançaram uma pesquisa que estudou o acúmulo de habeas corpus nos tribunais superiores brasileiros. O estudo identificou que boa parte das questões jurídicas levadas ao exame dos tribunais superiores acontecem porque os tribunais de segunda instância não aplicam as súmulas ou entendimentos pacificados pelo STJ e STF.


FALSO

Nenhum país do mundo moderno tem isso. Todos exaurem o julgamento de crime comum em dois graus.

Esse foi um dos pontos discutidos pelo ministro Teori Zavascki no habeas corpus 126.292, que defendeu a mudança da jurisprudência do STF sobre execução de pena, em 2016. Em seu voto, Zavascki citou um estudo realizado por Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Mônica Nicida Garcia e Fábio Gusman, intitulado “Panorama nos ordenamentos nacional e estrangeiro”, para afirmar que outros países também aplicavam a lei assim. O ministro citou alguns exemplos: na Inglaterra, por exemplo, a regra é aguardar o julgamento dos recursos já cumprindo a pena, a menos que a lei garanta a liberdade pela fiança, e em países como Estados Unidos e Canadá, a sentença pode começar a ser executada após condenação na primeira instância.

À época, por sete votos a quatro, o STF seguiu o voto do relator e entendeu que a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência, expressa no inciso LVII do artigo 5º, que afirma que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Porém, no mesmo julgamento, foram citados outros exemplos de países que garantem a presunção de inocência até o trânsito em julgado da condenação penal. No direito alemão, o Código de Processo Penal (Strafprozeßordnung) afirma que as “sentenças condenatórias não são exequíveis enquanto não passarem em julgado”. Se o acusado é fortemente suspeito de um crime grave, porém, a regra é que responda preso. Lá, também há tribunais de primeira e segunda instância e o Tribunal Federal de Justiça (Bundesgerichtshof), que é o tribunal de último recurso e que conhece apenas recursos em matéria de direito — diferentemente do que o STF brasileiro tem feito.

A legislação italiana também afirma que “o réu não é considerado culpado até ser condenado em última análise” — lá, também há tribunais na primeira e segunda instância, e recursos podem ser apresentados ao Tribunal de Cassação (Corte di Cassazione), sediado em Roma, que é a última instância de recurso e pronuncia-se apenas sobre questões de direito.

Em Portugal, a lei também diz que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. No país, alémdos tribunais de primeira e segunda instância, há o Supremo Tribunal de Justiça que, salvo exceções legalmente consagradas, apenas conhece de matéria de direito.


EXAGERADO

O medo campeia no país, 64,7 mil homicídios em 12 meses.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum de Segurança Pública, foram registrados 61.283 mortes violentas intencionais no país em 2016. São os últimos dados disponíveis. O número corresponde à soma das vítimas de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora. A taxa foi de 29,7 mortes a cada 100 mil habitantes. A variação foi de 4% em relação a 2015.


INSUSTENTÁVEL

... ante uma absoluta incapacidade de investigação [de homicídios], que só chega a 8%.

Esse percentual de elucidação em casos de homicídio é bastante usado por pesquisadores e especialistas em diversas bibliografias. Já foi citada também pelo atual ministro extraordinário da Segurança Pública, Raul Jungmman. O dado consta também em um documento oficial da Enasp (Estratégia Nacional de Segurança Pública), uma comissão que reúne o Ministério da Justiça, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público. Ele é atribuído a uma pesquisa da Associação Brasileira de Criminalística que, em 2011, teria constatado que a taxa de esclarecimento variava entre 5% e 8%. Aos Fatos entrou em contato com a associação, mas não encontrou essa pesquisa.

O Truco, projeto de checagem da Agência Pública, também checou essa afirmação recentemente, dita em outra ocasião pelo próprio Ciro Gomes. À agência, o Instituto Sou da Paz afirmou que a pesquisa não existe. “O que existe são pesquisas regionais que precisam ser avaliadas por não seguirem um mesmo padrão”, Bruno Langeani, gerente de sistemas de justiça e segurança pública do Sou da Paz.

Há no entanto, tentativas de mensurar a capacidade de investigação no país. Em 2012, o Conselho Nacional do Ministério Público fez um levantamento e identificou que dos 43.123 inquéritos monitorados no Brasil, 78% foram arquivados por impossibilidade de se chegar aos autores.

No ano passado, um levantamento do Instituto Sou da Paz mostrou que 21 unidades federativas não têm dados sobre investigação e denúncia de envolvidos em assassinatos. Só seis conseguiram calcular um índice de esclarecimento desses crimes: Pará (4%), Rio de Janeiro (11%), Espírito Santo (20%), Rondônia (24%), São Paulo (38%) e Mato Grosso do Sul (55,2%). Com um estudo publicado em outubro de 2017, o Instituto também mostrou que em São Paulo, sobre uma amostra representativa de inquéritos de homicídio doloso, 34% geraram denúncias penais e apenas 5% chegaram a ser julgados. O instituto defende a criação de um Indicador Nacional de Investigação de Homicídios para mensurar o desempenho das investigações criminais de cada estado.


VERDADEIRO

60 milhões de brasileiros estão com o nome sujo no SPC e no Serasa.

Segundo dados do indicador do SPC Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito) e da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas, o ano de 2017 se encerrou com 60,2 milhões de brasileiros com restrição ao crédito — 39,6% da população com idade entre 18 e 95 anos, diz o comunicado e um aumento de 1,27% na comparação com a quantidade de inadimplentes em dezembro do ano anterior.

Mas o número cresceu. Em março deste ano, já eram 62,1 milhões de consumidores inadimplentes, o maior número já observado pelo SPC Brasil.


INSUSTENTÁVEL

É o maior endividamento das famílias da história brasileira.

Segundo informado ao Aos Fatos pelo SPC Brasil, a série histórica do total de negativados no país teve sua metodologia revisada, por isso, não é possível comparar essa série com anos anteriores ao seu início.

A série histórica revisada começa em janeiro de 2015, quando eram 54,6 milhões os inadimplentes no país. A primeira vez que o número rompeu a barreira dos 60 milhões foi em maio de 2017, quando atingiu 60,1 milhões mais precisamente. Hoje, são 62,1 milhões de consumidores inadimplentes.

Como a comparação abrange um período curto, de apenas três anos, o Aos Fatos considera INSUSTENTÁVEL a afirmação de que esse é o maior endividamento das famílias na história.


VERDADEIRO

Só o Brasil e a Estônia não cobram [imposto sobre lucros e dividendos].

O pré-candidato refere-se a discussão sobre a necessidade de aumentar os impostos pagos pelos mais ricos no país, taxando lucros e dividendos — hoje, o lucro obtido por uma empresa é tributado, mas quando é distribuído na forma de dividendos a seus sócios ou acionistas, estes declaram os valores como pessoa física e não pagam imposto de renda sobre eles.

Segundo um artigo do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo, vinculado ao Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), além do Brasil, somente a Estônia oferece isenção tributária ao topo da pirâmide. O México e a Eslováquia também isentavam os dividendos até 2010, mas enquanto o México retomou a taxação em 2014, a Eslováquia instituiu em 2011 uma contribuição social para financiar a saúde.


EXAGERADO

[O ex-presidente] Fernando Henrique (...) aumenta a carga tributária de 27% para 36,5% do PIB...

Segundo dados do IBGE, que trazem o resultado da divisão entre o somatório dos impostos, taxas e contribuições e o valor corrente do produto interno bruto, quando a Constituição de 1988 foi homologada, a carga tributária no país era de 23,3% do PIB. Quando o ex-presidente Fernando Henrique assumiu o cargo, em 1995, ela passou para 27,9%. Até 1997, houve queda, e a carga tributária chegou a 26% do PIB. Depois, voltou a subir e chegou, em 2003, a 31,5%.

Já os dados da Receita Federal, obtidos pela divisão do volume total de receitas tributárias pelo valor adicionado (PIB) gerado no mesmo período, mostram que a carga foi de 29,74% em 1995 para 34,88% em 2003. O pico teria sido em 2002, ao atingir 35,5%.

Ou seja, em nenhuma das duas bases a carga tributária chegou, no entanto, aos 36,5%. Por isso, a declaração é EXAGERADA.

Outro lado. A assessoria de imprensa do pré-candidato foi procurada para comentar a checagem. Até a última atualização desta reportagem, Aos Fatos não havia obtido retorno.

A reportagem foi atualizada às 12h10 de 28 de abril de 2018 para acrescentar informações sobre a organização do Poder Judiciário de Portugal, Alemanha e Itália na checagem sobre o Judiciário em outros países. A classificação da declaração se mantém.


Esta reportagem foi publicada de acordo com a metodologia anterior do Aos Fatos.

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