Nelson Jr./STF

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Outubro de 2019. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Não é verdade que decisão do STF sobre segunda instância pode beneficiar 169,7 mil presos

Por Amanda Ribeiro e Bruno Fávero

16 de outubro de 2019, 20h01

O STF (Supremo Tribunal Federal) decide nesta quinta-feira (17) se réus podem ser presos logo após condenação em segunda instância ou se é necessário aguardar o esgotamento dos recursos para começar a cumprir a pena.

O julgamento de ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) sobre o assunto pode afetar quase cinco mil presos, segundo o CNJ (Conselho Nacional da Justiça), incluindo condenados famosos pela Operação Lava Jato como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu.

Porém, veículos de imprensa e perfis em redes sociais têm feito circular estimativas incorretas segundo as quais 169,7 mil pessoas poderiam ser soltas caso a Suprema Corte decida proibir a prisão em segunda instância.

Para esclarecer o assunto, Aos Fatos explica o que está sendo julgado pelo STF, quais os possíveis impactos da decisão e por que os números que circulam nas redes estão errados.


O que exatamente o STF está decidindo?

Com julgamento marcado no STF para esta quinta-feira (17), as ADCs 43, 44 e 54 tentam reverter o entendimento do tribunal de que a prisão pode ser feita após a condenação judicial em segunda instância.

O Poder Judiciário brasileiro é composto oficialmente por duas instâncias: na primeira, o juiz analisa e julga a ação que chegou à Justiça. O resultado da sentença pode ser contestado pelas partes do processo em órgão colegiado, a segunda instância. A existência das duas é chamada de garantia constitucional do duplo grau de jurisdição.

Depois de serem julgadas pela segunda instância, as ações podem seguir, ainda, para os tribunais superiores, caso do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e do STF. De acordo com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), eles podem ser considerados a terceira instância, mesmo que esse grau de hierarquia não exista formalmente no Judiciário.

O que as ADCs solicitam é a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código Penal, que determina que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Outro argumento utilizado é o da presunção da inocência, presente no artigo 5º da Constituição Federal. De acordo com o texto, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Uma sentença é considerada transitada em julgado quando não há mais possibilidade de recurso na Justiça. No caso da prisão em segunda instância, por exemplo, o réu poderia ainda recorrer, dentro dos prazos estipulados, à análise dos tribunais superiores.

O Supremo entende, desde 2016, com o julgamento do habeas corpus 126.292, que é possível a prisão em segunda instância. Citando, em seu voto, um caso de 1997, o então ministro Teori Zavascki, que atuava como relator, afirmou que, “com a condenação do réu, fica superada a alegação de falta de fundamentação do decreto de prisão preventiva”. Ainda segundo ele, eventuais recursos não impediriam o cumprimento do mandado de prisão.

Desde a promulgação da Constituição, em 1988, até 2009, havia o entendimento de que a prisão poderia ser decretada após condenação em segunda instância, a depender do parecer do juiz que fosse responsável pelo caso. Naquele ano, no entanto, o STF decidiu, ao julgar o habeas corpus de um fazendeiro, que só poderia ser preso o réu que tivesse sua sentença transitada em julgado. Esse entendimento foi alterado em 2016.


Qual o impacto potencial da decisão?

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) estima que no máximo 4.895 presos poderiam ser postos em liberdade se o STF reverter a decisão que permite a prisão a partir da condenação em segunda instância. A estimativa foi feita pelo órgão com base nos mandados de prisão pelo segundo grau expedidos por todos os Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça do Brasil.

Isso representaria 0,59% da população carcerária do Brasil, que é estimada em 834.400 pessoas, segundo consulta do Aos Fatos ao BNMP (Banco Nacional de Monitoramento de Prisões) no dia 8 de outubro – desde então, a informação foi tirada do ar.

Isso não significa porém, que esse seria necessariamente o número de pessoas soltas. Primeiro porque a estimativa se baseia no número de mandados de prisão emitidos e não nas prisões efetivamente realizadas. É possível que parte das ordens não tenha sido cumprida e que outra parte tenha sido expedida contra pessoas que já estavam presas.

Além disso, a saída da prisão não seria automática e dependeria de decisão judicial em cada caso, que poderia ocorrer mesmo sem um pedido do preso, afirma o defensor público do Mato Grosso e especialista em direito penal Fernando Antunes Soubhia.

"Todo juiz, quando reconhece a ilegalidade de uma prisão, pode e deve relaxá-la. Mas na prática o que eu imagino é que cada advogado terá que fazer uma petição para o tribunal onde o caso está", afirma.

O professor de direito penal da FGV São Paulo Davi Tangerino concorda. "O preso deverá pedir sua liberdade no juízo das execuções. Os juízes podem liberá-los sem provocação, mas me parece menos provável", afirma.

Entretanto, mesmo com o pedido do advogado, o juiz de um caso pode decidir que há outras razões para manter o condenado preso e decretar sua prisão preventiva, mecanismo que não é objeto do julgamento da Suprema Corte. Isso pode acontecer, por exemplo, se o juiz entender que há risco de fuga ou à ordem pública.

Corrupção. Na Lava Jato, treze presos poderiam ser soltos, segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo, incluindo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-ministro José Dirceu.

Outros presos pela operação, como o ex-governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral e o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, não seriam beneficiados, pois também cumprem mandados de prisão preventiva.


De onde vêm os outros números e por que estão errados?

Circularam na imprensa e nas redes sociais números exagerados sobre quantos presos poderiam ser soltos caso o STF volte a proibir a prisão em segunda instância. O site Poder360, por exemplo, apontou (e depois corrigiu a informação) que 169,7 mil pessoas poderiam ser afetadas pela decisão, citando como fonte o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). O site O Antagonista também reproduziu esse número.

O número está incorreto porque, segundo o próprio CNJ, abarca todos os presos que foram condenados, mas cujo processo ainda não transitou em julgado. Isso inclui as pessoas cuja prisão foi determinada com base na decisão de 2016 do STF, mas também dezenas de milhares de detentos em prisão preventiva que já tiveram alguma condenação e ainda recorrem da sua sentença.

Antes da decisão de 2016, a legislação brasileira já admitia a prisão sem chamado trânsito em julgado em alguns casos. O artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP), por exemplo, prevê que a prisão preventiva pode ser decretada em qualquer fase do processo "como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal".

Também há a possibilidade de prisão temporária (de até cinco dias, prevista quando é "imprescindível para investigação policial", segundo a lei 7.960) ou de prisão em flagrante (de até 24 horas, que pode ser convertida para prisão preventiva, segundo o CPP).

Esses mecanismos fazem com que muitos presos respondam por todo o processo da cadeia, mesmo antes de qualquer decisão judicial os condenando. Quando eles enfim são condenados, mesmo que em primeira instância, passam a figurar na lista de "Presos Condenados em Execução Provisória" do CNJ, da qual o número de 169 mil foi retirado.

Histórico. O número de 169 mil presos é citado desde o ano passado e chegou a fundamentar uma decisão do presidente do STF, Dias Toffoli, sobre o assunto.

Em dezembro de 2018, o ministro Marco Aurélio Mello contrariou a decisão do plenário do STF de 2016 e concedeu uma liminar que suspendia todas as prisões decretadas por condenação em segunda instância.

Ao cassar a liminar do colega, Dias Toffoli citou parecer da Procuradoria-Geral da República que alertava para o risco à segurança pública representado pela decisão de Marco Aurélio, afirmando que "segundo dados do CNJ, tal medida liminar poderá ensejar a soltura de 169 mil presos no país". A manifestação da PGR, por sua vez, se baseou em uma reportagem do site G1 cujos dados também foram reproduzidos pelo Jornal Nacional, da TV Globo. O portal cita o CNJ como fonte da informação.

Um levantamento feito por técnicos do STF e divulgado pela colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, evidenciou quão errado é o número que circulou. Desde que a decisão sobre prisão após segunda instância foi publicada, a população carcerária no Brasil aumentou em 85 mil presos. Ou seja, mesmo que todos os mandados de prisão executados no país desde então fossem consequência da decisão do STF, o número não chegaria perto do que estava sendo veiculado.

Depois disso, esse número de 85 mil presos também foi distorcido e apresentado pelo O Antagonista e por outros sites como uma estimativa das pessoas que poderiam ser libertadas pela decisão do STF.

Referências:
1. G1 (Fontes 1 e 2)
2. STF (Fontes 1, 2, 3 e 4)
3. Jusbrasil
4. Planalto (Fontes 1 e 2)
5. Conjur
6. CNJ
7. Folha de S.Paulo (Fontes 1 e 2)
8. Poder360 (Fontes 1 e 2)
9. O Antagonista (Fontes 1 e 2)
10. Planalto (Fontes 1 e 2)
11. Estadão

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