🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Outubro de 2018. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

É falso que Fernando Haddad defendeu em livro sexo entre pais e filhos

Por Alexandre Aragão

15 de outubro de 2018, 17h59

Não é verdade que Fernando Haddad, presidenciável do PT, escreveu em livro que o incesto deve ser aceito pela sociedade, como tem sido disseminado em diversos posts nas redes sociais após publicação do filósofo Olavo de Carvalho no Facebook neste domingo (14). Ele se corrigiu e apagou o post horas depois, mas isso não impediu a disseminação da informação falsa na internet.

O livro a que Olavo fez referência, “Em Defesa do Socialismo”, publicado pela editora Vozes (Petrópolis) em 1998, é uma análise teórica do “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friederich Engels, e foi lançado em comemoração aos 150 anos do manifesto. Aos Fatos teve acesso à íntegra da obra nesta segunda-feira (15) e pôde constatar que, em nenhum trecho, o livro cita “incesto” ou qualquer ideia que promova sexo entre familiares ou a dissolução da família nuclear.

Ao menos duas fotos de páginas de outro livro — que também não falam diretamente de incesto — passaram a circular nas redes como se fossem da obra de Haddad, mas também não fazem parte dela. As fotos mostram páginas do "Decálogo de Lênin", obra falsamente atribuída à Vladimir Ilyich Ulyanov, líder da Revolução Russa, e já checada por outros sites, como o Boatos.org.

Nesta terça-feira (16), a editora Vozes, que publicou o livro, emitiu uma nota publicada em suas redes sociais em que afirma que "não existe, neste livro publicado pela editora Vozes, o conteúdo que está sendo compartilhado nas redes sociais".

O material foi enviado por leitores do Aos Fatos no WhatsApp (saiba mais). Para participar, envie uma mensagem para (21) 99747-2441.

As acusações sobre o livro de Fernando Haddad também foram denunciadas por usuários do Facebook e os posts com conteúdo enganoso foram marcados com o selo FALSO na ferramenta de verificação da rede social (entenda como funciona). Uma dessas publicações já acumula mais de 52 mil compartilhamentos.

Veja abaixo, em detalhes, o que checamos.


FALSO

Haddad escreveu livro que defende a relação sexual entre pais e filhos

No post de Facebook em que disseminou a informação falsa pela primeira vez, Olavo de Carvalho escreveu: “Estou lendo um livrinho do Haddad, onde ele defende a tese encantadora de que para implantar o socialismo é preciso derrubar primeiro o 'tabu do incesto'. Kit gay é fichinha. O homem quer que os meninos comam suas mães”. Nada disso é verdade.

O livro a que Olavo faz referência, “Em Defesa do Socialismo”, publicado pela editora Vozes (Petrópolis) em 1998, é uma análise teórica breve (67 páginas) sobre o “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friederich Engels, e foi lançado em comemoração aos 150 anos da obra. O livro é dividido em quatro capítulos, além de um prefácio escrito por Paul Singer (1932-2018): “Em Defesa do Socialismo”, “O Legado de Marx”, “Propostas de Políticas Socializantes” e “Perspectivas Concorrentes” — este último, subdividido em três tópicos: “Welfare State nacional e mundial”, “Neonazismo” e “Fascismo”.

Em nenhum trecho o livro cita “incesto” ou qualquer ideia que promova sexo entre familiares ou a dissolução da família nuclear. Ao menos três fotos de páginas de outros livros — estes, sim, defendendo o incesto — circularam na internet como se fossem da obra de Haddad, mas não fazem parte dela.

Há cópias do livro nas bibliotecas de três faculdades da USP (Universidade de São Paulo): FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), FEA (Faculdade de Economia e Administração) e FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo). Todas estavam alugadas quando Aos Fatos consultou os locais, na tarde desta segunda-feira (15). Também há uma cópia disponível para consulta na Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, onde a reportagem pôde consultar o livro (leia trechos abaixo) e constatar que não há referências, implícitas ou explícitas, ao incesto.

Procurada por Aos Fatos, a editora Vozes afirmou que a obra “já está fora de nosso catálogo [esgotado] há bastante tempo”. Em nota, a editora também negou referências a incesto na obra: “não existe, neste livro publicado por nós, o conteúdo que está sendo divulgado nas redes sociais. As páginas que estão sendo divulgadas juntamente com a capa do livro que publicamos não pertencem à obra em questão”.

Após apagar o texto que continha a acusação, Olavo de Carvalho publicou que, “em sentido literal e material, não é exato o que escrevi às pressas num post que logo em seguida retirei de circulação, segundo o qual o Haddad ‘defende’ ou ‘prega’ a prática do incesto”. Ele prossegue afirmando que Haddad “apenas subscreve integralmente o programa da ‘sociedade erótica’ pregado pela Escola de Frankfurt, o qual advoga claramente a erotização das relações entre as mães e seus filhos (publiquei depois um parágrafo do Max Horkheimer nesse sentido)”.

“Comunistas sempre escrevem de maneira a que seus textos sejam compreendidos de um modo pelos ‘de dentro’, e de outro, mais inofensivo, pelos ‘de fora’. São mesmo especialistas nisso, o que torna a coisa ainda mais abjeta do que uma pregação direta, literal e ingênua a favor do incesto”, disse Carvalho.

No Twitter, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), publicou uma imagem do post de Carvalho e escreveu em letras maiúsculas: “É isso que você quer ver governando o país?”. Após Carvalho admitir que havia publicado uma informação falsa, o vereador também apagou o tweet, que estava fixado no seu perfil.

No domingo (14), após a reprodução da acusação no Twitter do filho de Bolsonaro, Haddad declarou: “Qual o limite da loucura do meu adversário? Acusar um oponente de defender o incesto. Onde nós vamos parar?”.

Em relação à “sociedade erótica” a que Haddad se refere, o livro traz o seguinte:

Toda demanda social de transformação cultural ou comportamental é satisfeita, não com o revolucionamento dos hábitos e costumes sociais, mas com a oferta abundante de mercadorias e a reificação de consciências. O caso mais eloquente dessa mecânica talvez seja omovimento de libertação sexual que, "vitorioso", ao invés de gerar uma sociedade genuinamente erótica , deu ensejo a um duplo movimento de erotização do consumo de bens e da objetificação das relações sexuais , dessublimação repressiva que desemboca na indústria pornográfica.

Também traz o seguinte trecho:

A psicanálise viria assim suprir, no seio do marxismo, o degrau faltante entre base econômica e superestrutura ideológica. Além disso, a psicanálise poderia ajudar a explicar a estabilidade da ordem capitalista num momento em que sua necessidade objetiva já havia passado. Numa outra chave, procurou-se extrair dessa teoria sua força crítico-utópica, malgrado o pessimismo expresso pelo seu fundador, enfatizando-se aqueles elementos que efetivamente projetavam-se para lá do sistema presente, na direção de uma civilização erótica . Tanto na versão crítico-resignada como na versão crítico-utópica da recepção marxista da psicanálise, a terapia jamais foi plenamente aceita pois sempre esteve associada à ideia de que seria impossíveis ao indivíduo alcançar a cura numa sociedade irracional como a capitalista.

Separamos, abaixo, alguns outros trechos do livro de Fernando Haddad.

No início do capítulo “Propostas de Políticas Socializantes”, Haddad escreve:

A riqueza das sociedades onde domina o capitalismo superindustrial aparece como imensa oferta de bens públicos. Excluídas as transações internacionais, o produto nacional esgota-se com os gastos públicos, o investimento e o consumo (…). Nesse reino fantástico onde o indivíduo seria o senhor absoluto, até problemas como o desemprego são vistos como uma opção, no caso, uma opção do trabalhador que não aceitaria sujeitar-se a um salário menor compatível com sua produtividade (…).

Contudo, mesmo quando o ciclo dos negócios provoca exclusão social até o limite do coletivamente suportável, haveria sempre o mecanismo de redirecionar os gastos públicos, por meio do sistema eleitoral, no sentido de minimizar os efeitos de uma retração econômica. Assim, o projeto socialista, nos dias que correm, aparece como algo mesquinho, fruto de ressentimento, que pretende tirar a liberdade dos mais capazes. Um exame mais atento da sociedade capitalista revela, entretanto, uma realidade oposta da apregoada.

Mais à frente, Haddad afirma que “numa primeira fase do projeto socialista conviveriam propriedade socializada e mercado”. Para isso, ele continua:

far-se-ia necessário garantir que a propriedade dos meios de produção das empresas cooperativas pertencesse a um fundo público não-estatal: público por ser vedado aos trabalhadores cooperativados reprivatizar tais meios de produção; não-estatal por ser vedado à autoridade do Estado ferir a autonomia da sua gestão, que traria consigo ainda todos os vícios burgueses: maximização do ‘lucro’, poderes ilimitados aos gerentes — ainda que pudessem ser escolhidos pelo coletivo dos trabalhadores —, divisão autoritária do trabalho, etc.

Haddad escreveu ainda que:

numa segunda fase do projeto socialista, caso todos nós aprendêssemos, tal como os artistas, a inovar ou criar sem a necessidade de estímulos pecuniários extraordinários, poder-se-ia conceber a hipótese de superação do mercado, não pelo planejamento burocrático, seu oposto, mas por uma decorrência até certo ponto natural do processo: sob o comando dos não-proprietários, as cooperativas, progressivamente, passariam a cooperar entre si, inclusive transnacionalmente, concorrendo para a superação do sistema produtor de mercadorias em escala global.

Publicado ainda antes da chegada do PT ao governo federal, o livro de Haddad também contém uma crítica ao partido.

O que parece não ter sido suficientemente explorado ainda é o potencial emancipador da forma discursiva da psicanálise em política como contraponto do marketing (…). O Partido dos Trabalhadores, nos anos 80, conseguiu, em parte, essa proeza. Sem um programa definido, num país semianalfabeto, pela simples forma como se apresentava ao eleitorado, conheceu um crescimento vertiginoso e um prestígio social espantoso. Não vinha com fórmulas prontas, mas observava sua pauta e eventualmente dava caráter geral a reivindicações particulares. Onde havia um sopro de vida social criativa, lá estava o PT, aprendendo a ouvir. Com método, extraía das experiências de que participava aquilo que tinha força transformadora (…). Nos anos 90, o PT equivocadamente resolveu atribuir às suas virtudes a responsabilidade pelo seu fracasso eleitoral. Hoje, infelizmente, o partido que funcionou como uma espécie de ‘psicanalista social’ é que está precisando de uma boa terapia.


Esta reportagem foi atualizada em 16 de outubro de 2018, às 20h27, para incluir a nota publicada nas redes sociais pela editora Vozes.


Esta reportagem foi publicada de acordo com a metodologia anterior do Aos Fatos.

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