Antonio Cruz/Agência Brasil

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Dezembro de 2016. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Ao contrário do que diz deputado, decisão do STF sobre aborto não libera 'matar crianças'

Por Bárbara Libório

2 de dezembro de 2016, 09h50

A reação de deputados ao voto do ministro do STF (Superior Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso na última terça-feira (29) contribuiu para a disseminação de interpretações equivocadas a respeito do que realmente significa a decisão da primeira turma da Corte. Muitos parlamentares usaram a tribuna para protestar contra o que chamaram de “instituição do assassinato” ou “decisão inconstitucional” da primeira turma do STF, que concedeu habeas corpus à equipe médica de uma clínica clandestina de aborto.

O deputado do PRB de Goiás, João Campos, afirmou que, com a decisão, o STF estaria permitindo o assassinato de crianças desde que elas ainda estivessem sendo geradas até o terceiro mês.

Aos Fatos debruçou-se sobre o voto de Barroso, consultou bibliografia específica, conversou com duas especialistas e mostra que a decisão, que se trata de um habeas corpus, vale apenas para o caso específico — pode abrir, no entanto, precedente para a descriminalização do ato para mulheres ou médicos que realizam aborto.

Veja o que checamos.


EXAGERADO

Supremo diz que podem-se matar crianças, desde que ainda estejam sendo geradas até o terceiro mês. — Deputado João Campos (PRB-GO)

O voto de Barroso, que foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin e Rosa Weber, refere-se ao HC 124.306, de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. Cinco pessoas foram presas em flagrante em uma ação policial em clínica clandestina no Rio de Janeiro. Elas foram denunciadas por formação de quadrilha e por provocar aborto com o consentimento da gestante.

Segundo os autos, o ministro afastou a prisão preventiva dos médicos e enfermeiros com base em dois fundamentos. O primeiro, de que não estariam presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar (risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal). De acordo com ele, “os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação”.

O segundo e polêmico fundamento diz respeito a criminalização do aborto até os três meses de gestação. Segundo Barroso, “a criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade”.

A decisão do STF, no entanto, limita-se à concessão do habeas corpus no caso específico.

Como explica a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e integrante do Gevid (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do MP-SP), Fabíola Sucasas, a decisão não determina sequer a resolução do processo que a equipe médica enfrenta.

“Essas pessoas continuam sendo processadas pelo delito de aborto. Se eles forem pronunciados, levados a júri, é o júri que vai decidir. Mas é lógico que, no mérito, já que o ministro avançou no sentido de entender que o procedimento não é crise, isso dá peso para a manifestação da defesa quando for pedir a absolvição”, explica.

A decisão não tem efeito vinculante. Ou seja, não é válida para outros casos.

“O aborto continua sendo proibido. Mas a decisão sinaliza uma tendência de descriminalização do aborto, preocupação do STF de enxergar a questão dos direitos das mulheres como algo muito importante. Existe o direito à vida, mas também o direito à dignidade e livre escolha”, diz a promotora.

O voto de Barroso. Em seu voto, o ministro defende que a penalização do aborto até os três meses de gestação viola os princípios da proporcionalidade e é incompatível com direitos fundamentais como: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante e a igualdade da mulher.

Segundo a professora de direito constitucional da Faculdade de Direito da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Jane Reis, o princípio da proporcionalidade diz respeito a um mecanismo de interpretação usado para controlar a compatibilidade das leis que restrigem direitos fundamentais com a Constituição. Ou seja, quanto mais grave e intensa for uma restrição legal a direitos, mais importante e intensa a proteção dos direitos que visa a proteger.

Em relação ao princípio da proporcionalidade, Barroso diz que criminalização não produz impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, afirma que o Estado pode evitar a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos (educação sexual e distribuição de contraceptivos, por exemplo) e que a penalização gera custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.

"No caso, o voto do ministro Barroso adotou a tese de que a criminalização não é uma forma adequada, nem necessária nem proporcional, de promover a proteção da vida, pois não atinge a finalidade de reduzir os abortos e limita de forma desigual e desarrazoada a liberdade das mulheres", explica a professora.

Conforme Jane, a proporcionalidade não aparece explicitamente na Constituição, mas o STF a aplica e há quem a critique. Em outra matéria polêmica, o ministro Gilmar Mendes usou esse princípio para declarar a inconstitucionalidade da criminalização do uso de drogas em agosto do ano passado.

Em seu voto sobre o aborto, Barroso também ressaltou que a criminalização não é aplicada em países democráticos e desenvolvidos, como os Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, entre outros, e afirmou que a legislação restritiva tem ainda mais impacto nas mulheres mais pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas e não podem recorrer ao sistema público de saúde para se submeter aos procedimentos.

Os cinco ministros da primeira turma votaram pela manutenção da liberdade. Rosa Weber e Edson Fachin acompanharam o voto de Barroso. Marco Aurélio e Luiz Fux deliberaram apenas sobre a legalidade da prisão.

Reação. A reação dos parlamentares da Câmara do Deputados foi rápida. No mesmo dia, o presidente da casa Rodrigo Maia (DEM-RJ) anunciou a criação de uma comissão especial para debater o aborto - a discussão será incluída no debate sobre a PEC 58/2011, que trata de licença-maternidade no caso de bebês prematuros.

“Tenho discutido com muitos líderes que, às vezes, o Supremo legisla. Entendemos que isso aconteceu ontem e minha posição, discutindo com líderes, é que toda vez que entendemos que isso acontece nossa obrigação é responder, porque há uma interferência do Poder Legislativo”, disse Maia.

Selo. A decisão do STF refere-se a um habeas corpus de um caso específico. A decisão não tem efeito vinculante. Por isso, Aos Fatos classifica a declaração de Campos como EXAGERADA.

(Colaborou Tai Nalon)


Esta reportagem foi publicada de acordo com a metodologia anterior do Aos Fatos.

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