Jefferson Rudy/Agência Senado

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Junho de 2021. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Na CPI, Nise Yamaguchi defende 'tratamento precoce' com informações enganosas

Por Amanda Ribeiro, Luiz Fernando Menezes, Marco Faustino e Priscila Pacheco

1 de junho de 2021, 14h24

A médica oncologista e imunologista Nise Yamaguchi usou dados falsos em depoimento à CPI da Covid-19 no Senado nesta terça-feira (1º) para defender o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a infecção pelo novo coronavírus. Segundo ela, o chamado "tratamento precoce" teria tornado o Amapá um dos locais com menor índice de mortalidade por Covid-19 no mundo. No entanto, se fosse um país, o estado teria a 15ª maior taxa entre as 190 nações monitoradas pela Universidade Johns Hopkins, dos EUA.

Yamaguchi também disse que nunca teve encontro privado com Jair Bolsonaro, mas, em entrevista à revista Veja em julho de 2020, ela afirmou que tinha contato direto com o presidente. De acordo com a agenda oficial de Bolsonaro, ela também foi a única convidada para uma reunião no dia 15 de maio de 2020.

A médica, que foi cotada para assumir o Ministério da Saúde, se notabilizou pela defesa do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento precoce de pacientes com Covid-19. Levantamento do Radar Aos Fatos identificou que Yamaguchi defendeu os medicamentos em 167 vídeos no YouTube desde o início da pandemia.

Em resumo o que checamos:

  1. É FALSO que Nise Yamaguchi nunca teve encontros privados com Jair Bolsonaro. Em entrevista no passado, ela disse que tinha contato direto com o presidente, e a agenda oficial do Palácio do Planalto indica que a médica teve uma reunião reservada com o mandatário em 15 de maio de 2020;
  2. Não é verdade que o Amapá tem uma das menores taxas de mortalidade do mundo e que isso seria motivado pelo uso do suposto “tratamento precoce”. Se fosse um país, o estado teria a 15ª maior taxa de mortalidade por Covid-19 entre as 190 nações monitoradas pela Universidade Johns Hopkins;
  3. A médica engana ao dizer que uma pesquisa feita no estado de Nova York concluiu que o lockdown por si só não teria eficácia para conter a pandemia. O levantamento, de maio de 2020, não indicou este resultado e salientou a importância do distanciamento social;
  4. Tampouco é verdade que o México recomenda o uso de hidroxicloroquina contra a Covid-19. O país deixou de indicar a droga em agosto do ano passado;
  5. Não foram localizados estudos que atestem a afirmação da oncologista de que “tratamento precoce” reduz mortes e casos graves de Covid-19 e as evidências encontradas em estudos sólidos mostram que não há efeito sobre óbitos e hospitalizações;
  6. É FALSO que universidades europeias projetaram 1,15 milhão de mortes por Covid-19 no Brasil até abril do ano passado. A estimativa era do Imperial College of London e até o final de 2020, caso nenhuma medida de contenção da pandemia fosse adotada;
  7. A oncologista mentiu à CPI quando disse ter participado da criação do comitê de crise do Ministério da Saúde que enfrentou a pandemia de H1N1 em 2009. A informação foi desmentida por José Gomes Temporão, titular da pasta à época, que disse que ela era apenas uma das representantes da pasta em São Paulo;
  8. Nenhum dos dois estudos da Fundação Henry Ford sobre a hidroxicloroquina atestou a eficácia da droga para tratar precocemente a Covid-19. Um previa o uso do remédio como prevenção à doença, mas foi descontinuado em 2020. Outro considerava efeitos da droga sobre internados, mas a metodologia não era adequada para comprovar a ação do remédio;
  9. É VERDADEIRO que o uso de hidroxicloroquina contra Covid-19 é recomendado pelo governo da Venezuela. A droga faz parte do esquema de tratamento da doença naquele país desde julho do ano passado.


Eu nunca tive encontros privados com o presidente Bolsonaro.

A declaração é FALSA, porque, além de ter afirmado no passado que tinha contato direto com o presidente, consta da agenda oficial de Jair Bolsonaro uma reunião reservada com a médica no Palácio do Planalto no dia 15 de maio de 2020 às 10h45.

Além desse encontro, o nome de Yamaguchi aparece em outros três compromissos registrados na agenda presidencial em 6 e 7 de abril de 2020 e em 21 de maio de 2020. Nessas ocasiões, no entanto, havia a presença de outras pessoas, como ministros e deputados.

Yamaguchi também afirmou anteriormente ter contato direto com o presidente e que, inclusive, teria receitado zinco para Bolsonaro quando ele estava com Covid-19. Em entrevista à Veja, publicada em julho de 2020, ela disse: “ele não precisa me sondar [para uma vaga no Ministério], ele já me conhece, a gente conversa direto”.


Agora, a questão da eficiência desses medicamentos [do 'tratamento precoce']... Por exemplo, no Amapá, nós temos um dos menores índices do mundo de mortalidade. Exatamente eles utilizam essas medidas conjuntas.

A declaração é FALSA, porque, se fosse um país, o Amapá teria a 15ª maior taxa de mortalidade por Covid-19 entre as 190 nações monitoradas em ranking da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Além disso, é enganosa a associação sugerida pela médica entre a adoção do chamado "tratamento precoce" e o índice apurado no estado.

A taxa de mortalidade é a quantidade de pessoas que morreram por uma doença em relação à população total de uma região. O indicador do Amapá hoje é de 200,5 óbitos pela Covid-19 a cada cem mil habitantes, segundo dados do painel do Conass (Conselho Nacional de Secretarias de Saúde) coletados na manhã desta terça-feira (1º).

Assim, a taxa do Amapá é maior que as de estados da região Norte, como Pará (168,6), Tocantins (182,9) e Acre (188,4), e de ao menos outras oito unidades da federação: Maranhão (115,1), Bahia (142,8), Alagoas (142,4), Pernambuco (166,0), Rio Grande do Norte (174,4), Piauí (180,4), Minas Gerais (191,3) e Paraíba (190,9).

A taxa de mortalidade também não é indicada para medir o potencial de um tratamento, o que deve ser avaliado por meio de pesquisas com critérios mais rígidos. Os estudos robustos publicados até o momento concluíram que nenhum medicamento foi capaz de impedir ou tratar a infecção pelo novo coronavírus, como Aos Fatos já mostrou.

O uso das drogas sem eficácia comprovada contra a Covid-19 é propagado em Macapá, capital do Amapá, desde julho de 2020. Em dezembro do ano passado, o governo estadual anunciou que havia abastecido todas as unidades de saúde da capital com cloroquina e ivermectina para tratar pacientes com a doença.

Às 15h, depois da publicação desta checagem, a médica Nise Yamaguchi foi informada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) de que estava equivocada a informação sobre a taxa de mortalidade do Amapá. A médica disse que “sentia muito” pelos amapaenses e retificou a informação.


Esse dado [de que 84% das pessoas que foram parar nos hospitais estavam em isolamento] foi dado pelo governador de Nova York. Eles fizeram um estudo mostrando que os pacientes vinham de casa e que o lockdown somente não resolveria o problema.

A declaração de Nise Yamaguchi é FALSA, porque em nenhum momento a pesquisa citada concluiu que o lockdown sozinho não seria uma medida eficaz para conter a pandemia. Em apresentação do levantamento em maio de 2020, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, disse que o distanciamento social ajudou a reduzir o número de novos casos.

Na ocasião, Cuomo mostrou que, de um total de 1.269 pacientes recém-internados, 84% afirmaram que não estavam saindo de casa com frequência antes de adoecerem. Embora o dado citado por Yamaguchi seja verdadeiro, o levantamento não chega a questionar a eficiência do lockdown para conter a transmissão da Covid-19, como ela disse à comissão.

A pesquisa cita, também, a necessidade de reforçar a orientação de que mesmo os que respeitavam o isolamento deveriam tomar precauções adicionais, como lavar as mãos e manter distanciamento de visitas recebidas em casa, por exemplo.

"[Essa pesquisa] reforça aquilo que a gente vinha falando, que muito depende de como você se protege. Tudo está fechado. O governo fez tudo o que podia. A sociedade fez tudo o que podia. Agora é com você. Você está usando máscara? Você está aplicando álcool em gel? Se você tem pessoas mais novas que te visitam e que talvez sejam menos cuidadosas com o distanciamento social, você está ficando longe de pessoas mais velhas?", disse Cuomo.

O governador de Nova York também ressaltou na ocasião que as medidas de isolamento implementadas no estado haviam ajudado a reduzir o número de casos diários de Covid-19. "O que estamos fazendo está dando resultados. A taxa de hospitalização caiu. O número de mortes caiu e o número de novos casos caiu”. Essas informações foram repetidas em entrevista concedida ao apresentador Stephen Colbert dois dias mais tarde.

No ano passado, o Aos Fatos checou postagens enganosas sobre declarações de Cuomo na apresentação dos resultados da pesquisa.


Aqui, nós temos o México [que recomenda hoje o uso da hidroxicloroquina]...

É FALSO que o México recomenda o uso de hidroxicloroquina contra a Covid-19, como alegou a médica na CPI. O país deixou de indicar a droga para o tratamento da doença em agosto do ano passado. A orientação a favor do remédio durou cerca de quatro meses.

Em documento de abril de 2020, o governo mexicano divulgou que a cloroquina e a hidroxicloroquina eram usadas em hospitais do país para o tratamento da doença, embora faltassem evidências científicas. Em maio, um comunicado oficial ressaltou que as drogas não haviam apresentado eficácia e segurança em estudos observacionais e clínicos.

Em julho, a orientação passou a ser que as drogas deveriam ser usadas somente no âmbito de ensaios clínicos controlados, registrados e aprovados pelos comitês de ética e pesquisa da instituição em que o paciente era tratado. No mês seguinte, agosto, o México revogou todas as recomendações de uso desses remédios no tratamento da Covid-19.


E, certamente, a questão das estatísticas que os estudos têm demonstrado de benefícios do tratamento precoce, nos diversos estudos já aqui bem caracterizados, inclusive nas metanálises, faz com que, ao se utilizar esses medicamentos, a gente tenha uma diminuição significativa do número de mortos e do número de pacientes graves.

A declaração é FALSA porque a médica não disse quais os estudos que atestam a redução de mortes e casos graves de Covid-19 com "tratamento precoce", Aos Fatos não localizou pesquisas com resultados similares e as evidências mais robustas até agora apontam que medicamentos como a hidroxicloroquina não tiveram efeito sobre óbitos e hospitalizações.

Excluída de protocolos clínicos da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do governo americano no ano passado por não apresentar resultados positivos, a hidroxicloroquina não trouxe benefícios na redução da mortalidade ou do tempo de internação em grandes testes clínicos, como o Recovery Trial, realizado no Reino Unido com cerca de 1.500 pacientes.

Uma metanálise publicada em abril deste ano na revista Nature, que analisou dados de 28 testes clínicos feitos com a hidroxicloroquina e a cloroquina, concluiu que, além de ineficaz, o primeiro medicamento pode aumentar o risco de mortalidade de pacientes.

O antibiótico azitromicina, que médicos favoráveis ao "tratamento precoce" costumam prescrever combinado com a hidroxicloroquina, também não se provou eficaz contra a Covid-19 em estudos. Um teste clínico da Universidade de Oxford com 526 pacientes concluiu que a droga não ajudou a reduzir o número de óbitos ou de hospitalizações.

Outro medicamento que integra o "tratamento precoce", a nitazoxanida foi alvo de estudo feito pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações com universidades brasileiras, mas não se mostrou eficaz contra Covid-19. Apesar de o experimento mostrar que a droga reduziu a concentração de vírus no corpo do paciente, os sintomas não foram eliminados.

Também não há qualquer evidência de que o antiparasitário ivermectina seja eficaz contra a Covid-19. Um estudo in vitro de pesquisadores australianos indicou que a droga seria capaz de eliminar o vírus da célula, mas, para isso, as doses utilizadas foram muito acima das estipuladas na bula. Ainda não há resultados de testes clínicos com o remédio e, em março, a OMS recomendou que a ivermectina não fosse administrada fora de pesquisas.

Suplementos que são prescritos como parte de um "tratamento precoce", as vitaminas C e D e o zinco também não tiveram ação comprovada contra a infecção. Artigo publicado em fevereiro no periódico Jama, da Associação Médica Americana, mostrou que o uso de altas doses de vitamina C e zinco não alteraram o quadro de pacientes infectados. Ainda não foram publicados estudos confiáveis sobre a eficácia da vitamina D.


Houve um anúncio inclusive das universidades europeias de que nós teríamos milhões de mortes até abril do ano passado.

A estimativa de 1,15 milhão de mortes decorrentes da Covid-19 no Brasil foi feita pelo Imperial College of London em março do ano passado e projetava esse número de óbitos até o final de 2020, não até abril. Além disso, esta hipótese considerava um cenário em que nenhuma medida de contenção da pandemia fosse adotada no país. Por isso, a declaração de Yamaguchi foi considerada FALSA.

O estudo mencionado pela médica na CPI estimou quantas hospitalizações, infecções e mortes ocorreriam em 2020 em 202 países, considerando 12 cenários diferentes. Para o Brasil, os pesquisadores também haviam projetado 44,2 mil mortes em 2020 caso fossem aplicadas medidas rígidas para conter a disseminação da doença. No dia 31 de dezembro, o país registrava mais de 194 mil óbitos em decorrência da infecção.


Eu fiz parte da criação do comitê de crise [da gripe H1N1].

Na fala inicial aos senadores, Nise Yamaguchi mentiu ao afirmar que teria feito parte da criação do comitê de crise do Ministério da Saúde que lidou com a pandemia de H1N1, em 2009. Ao Aos Fatos, o médico sanitarista José Gomes Temporão, que era o titular da pasta na época, negou que a oncologista tenha integrado “qualquer atividade técnica ou científica” relacionada à doença e que atuou apenas como representante do ministério em São Paulo.

Em outro momento da CPI, ela foi confrontada pelo senador Humberto Costa (PT-PE) com o desmentido de Temporão e mudou a versão do que havia dito antes: “Mas eu trabalhei [no ministério] entre 2007 e 2010. Então, durante esse período, eu ia a São Paulo. Trabalhei, sim, com relação a toda a representação do gabinete no estado de São Paulo, numa época bastante grave, que foi a da H1N1”.


Então, a gente tem realmente uma eficácia comprovada [da hidroxicloroquina], através da Henry Ford Foundation

A Fundação Henry Ford tem dois estudos baseados no uso da hidroxicloroquina para combater a Covid-19, mas nenhum deles atesta a sua eficácia para tratar precocemente a infecção. Por isso, a declaração foi classificada como FALSA. Uma das pesquisas previa o uso do remédio como prevenção à doença, mas foi descontinuada em dezembro de 2020. Outra considerava a droga no tratamento de pacientes hospitalizados, porém era apenas uma pesquisa observacional, que não tem metodologia adequada para atestar eficácia de medicamentos (saiba mais aqui).

Publicado em julho do ano passado, o estudo observacional concluiu que a hidroxicloroquina havia reduzido a mortalidade de pacientes hospitalizados com Covid-19. No entanto, os próprios pesquisadores disseram que eram necessários "estudos prospectivos para examinar esse efeito". Além disso, a comunidade científica apontou problemas na pesquisa.

O único ensaio clínico, estudo considerado padrão ouro para avaliar medicamentos, feito pela Fundação Henry Ford com a hidroxicloroquina foi iniciado em abril do ano passado e tinha como foco a prevenção da Covid-19. Ele foi cancelado por causa do baixo número de voluntários inscritos, 624 de 3.000 pretendidos. Na página de registro da pesquisa é informado que “a taxa de eventos não atingiu a magnitude projetada; dado o baixo potencial de recrutamento, é improvável que um resultado positivo ocorra”.


...temos a Venezuela [que recomenda o uso da hidroxicloroquina contra Covid-19]

A citação de Nise Yamaguchi é VERDADEIRA porque a Venezuela indica oficialmente a hidroxicloroquina para tratar a Covid-19 desde julho de 2020. O medicamento consta no Guia de Manejo Terapêutico no site do Ministério da Saúde venezuelano. Em abril deste ano, o ministro da saúde, Carlos Alvarado, disse em entrevista que sua pasta aprovou a utilização da cloroquina no tratamento da infecção pelo novo coronavírus.

Outro lado. O Aos Fatos entrou em contato por e-mail e telefone com a médica Nise Yamaguchi com pedidos de esclarecimento sobre as declarações checadas. Não houve resposta até a última atualização desta reportagem.

Referências:

1. Site do Planalto (Fontes 1, 2, 3 e 4)
2. Universidade Johns Hopkins
3. Conass
4. Revista Veja
5. Aos Fatos (Fontes 1, 2, 3 e 4)
6. Governo do Amapá
7. Governo de Nova York
8. Governo do México (Fontes 1, 2, 3 e 4)
9. YouTube The Late Show with Stephen Colbert
10. O Globo
11. Estadão (Fontes 1 e 2)
12. Recovery Trial
13. Nature
14. Universidade de Oxford
15. ERS Journal
16. UOL (Fontes 1 e 2)
17. Jama
18. Imperial College London
19. G1
20. Fiocruz
21. Senado Federal
22. Governo da Venezuela (Fontes 1 e 2)
23. International Journal of Infectious Diseases (Fontes 1 e 2)
24. Clinical Trials (Fontes 1 e 2)
25. Henry Ford Health System


Esta reportagem foi publicada de acordo com a metodologia anterior do Aos Fatos.

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