Impune há sete meses, esquema de fraude de cartões de vacina no Telegram oferece até promoção

Por Milena Mangabeira

30 de abril de 2024, 17h05

Sete meses depois da denúncia feita pelo Aos Fatos, o esquema de venda de certificados falsos de vacinação segue ocorrendo livremente no Telegram. É possível encontrar em grupos na plataforma publicações recentes que prometem a inserção de dados falsos diretamente no sistema Conecte SUS.

A última atualização sobre o caso ocorreu em outubro do ano passado, quando a AGU (Advocacia-Geral da União) acionou a Justiça para solicitar a exclusão dos grupos em que ocorrem as negociações.

A reportagem verificou que um dos usuários denunciados pelo texto publicado em setembro continua oferecendo o serviço ilegal. Em março, o perfil publicou em grupos antivacina promoções para a venda de certificados falsificados, prometendo “descontos surpreendentes”. São oferecidos registros de diversos imunizantes, desde a vacina da Covid-19 até as que constam no calendário infantil.

Mensagem compartilhada em grupo no Telegram em que criminoso oferece promoção para fraudar cartões de vacinação.
'Preços jamais vistos'. Usuário denunciado em reportagem do Aos Fatos continua vendendo certificados de vacinação falsificados no Telegram (Reprodução/Telegram)

O esquema se assemelha ao caso que levou ao indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), do tenente-coronel Mauro Cid e de outras 15 pessoas por falsificação de certificados de vacinas contra a Covid-19. Em janeiro, a CGU (Corregedoria-Geral da União) concluiu que a fraude ocorreu na Unidade Básica de Saúde Parque Peruche, em São Paulo. Até dezembro de 2021, as unidades de saúde da cidade possuíam login único, sem identificação de usuário.

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O município do Rio de Janeiro, onde ocorreu a fraude revelada pelo Aos Fatos, também tem um sistema próprio de transmissão de dados de imunobiológicos, mas com login individual para cada usuário credenciado. Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde informou ainda que só é possível acessar o sistema pelos computadores das próprias unidades de saúde.

Foi dessa forma que o órgão conseguiu identificar a senha usada pelo fraudador, que fez o registro falsificado na Clínica da Família Augusto Boal, na Maré, bairro da zona norte do Rio. Segundo as investigações, o criminoso trabalhou na clínica até novembro de 2022 e teria roubado a senha de uma profissional que ainda atua na unidade de saúde para inserir o registro de imunização no sistema. A funcionária que teve os dados roubados registrou um boletim de ocorrência à época com apoio da secretaria, mas o caso não avançou.

A venda de documentos falsos de vacinação pode ser enquadrada como crime de peculato digital, associação criminosa e infração de medida sanitária preventiva.

Mensagem compartilhada em grupo no Telegram com oferta de certificados falsos de vacinação lançados com datas retroativas e espaçamento entre as doses, oferecidos com o ‘melhor preço’.
'Cubro qualquer oferta'. Novos usuários vendem certificados falsificados e apostam em preços mais baixos para 'disputar mercado' com outros fraudadores (Reprodução/Telegram)

Aos Fatos questionou diversas autoridades sobre o andamento das investigações:

  • A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro não deu informações e pediu que a reportagem questionasse a Polícia Civil;
  • A corporação, que respondeu a apenas um dos sete emails enviados pelo Aos Fatos desde outubro de 2023, não retornou o contato;
  • O Ministério Público Federal disse que há um processo que corre em sigilo envolvendo o Telegram e passaportes vacinais, mas não deu mais detalhes;
  • O Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro não conseguiu encontrar informações sobre o caso a partir do número do boletim de ocorrência, único dado que o Aos Fatos conseguiu fornecer;
  • A AGU disse não ter novas atualizações.

O Ministério da Saúde afirmou que não foram identificadas quebras de segurança no caso da Clínica Augusto Boal, já que a inserção dos dados foi feita a partir de um login verdadeiro.

A conclusão é similar à do caso de Bolsonaro. Em nota técnica publicada em janeiro de 2024, a CGU também concluiu que não houve quebra de segurança e que os protocolos de inserção de dados foram cumpridos de maneira correta (veja o item 4.38, p. 21).

Questionado sobre como funciona a transmissão de dados de imunobiológicos (veja as notas aqui e aqui), o Ministério da Saúde disse possuir um sistema centralizado de informações, a RNDS (Rede Nacional de Dados em Saúde), que funciona da seguinte forma:

  • Os dados são inseridos por profissionais de saúde nas salas de vacinação dos municípios;
  • Essas informações são encaminhadas à RNDS, onde passam por “diversas validações para garantir sua precisão e integridade”;
  • Finalizado o processo de autenticação, os dados vacinais aparecem em até 72 horas no aplicativo Conecte SUS, onde podem ser conferidos pelo paciente;
  • O Ministério da Saúde também ressaltou que a RNDS realiza auditorias dos dados e permite “correções por parte de gestores estaduais e municipais, caso algum dado seja registrado incorretamente”.
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Dados falsos continuam no sistema

Para comprovar a existência da fraude, Aos Fatos, com respaldo jurídico, negociou há sete meses um registro fraudulento em um perfil verdadeiro do SUS. Os criminosos inseriram uma dose da vacina contra a febre amarela e apagaram o registro real de um imunizante aplicado contra a H1N1.

Depois da publicação da reportagem, o Ministério da Saúde foi procurado para reverter as mudanças no registro. A orientação, no entanto, foi que a pessoa que teve os dados falsificados procurasse a unidade de saúde em que a vacina teria sido aplicada.

O processo dificulta a correção em casos de fraude, já que o registro falso foi feito em um estado diferente daquele onde vive a titular do cartão. Outro problema é que, sem investigação, a pessoa que teve os registros fraudados pode acabar se colocando em perigo e ser novamente alvo de criminosos ao buscar a correção de seus dados - já que, no caso revelado pelo Aos Fatos, o roubo da senha que possibilitou o esquema aconteceu no âmbito da unidade de saúde.

Cartão físico de vacinação enviado pelo fraudador ao Aos Fatos. Nele, consta  vacina falsa contra febre amarela acompanhada de carimbo e assinatura do aplicador. O documento está em nome da Clínica da Família Augusto Boal, no RJ
Cartão. Cartão de vacina carimbado e em nome da Clínica da Família Augusto Boal, no Rio de Janeiro, enviado pelo fraudador (Reprodução)

Certificado internacional de vacinação digital, baixado diretamente do aplicativo ConecteSUS, mostra a vacina falsa inserida, além de com dados do vacinador, laboratório e lote
Registro oficial. Certificado digital do aplicativo do governo federal mostra que inserção fraudulenta de vacina contra febre amarela foi bem-sucedida (Reprodução)

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